terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O planeta dos macacos e os furos de roteiro

Na década de 1970 os filmes da série Planeta dos macacos faziam um sucesso tão grande que alguém teve a ideia de fazer uma animação com o tema. Lançado em 1975, era resultado de uma associação dos estúdios DePatie-Freleng Enterprises com a 20th Century Fox Television e teve 13 episódios. 
O desenho é uma verdadeira decepção, inclusive para aqueles que são fãs dos filmes. A animação é fraca, com muitas repetições de cena, embora isso necessariamente não seja um defeito grave. O desenho de Jornada nas Estrelas tem animação ruim, mas roteiro bom e o resultado final acaba sendo ótimo. Por outro lado, o filme Selvagem, da Disney, tem ótima animação, mas roteiro chato. Resultado: foi um fiasco de bilheteria.
O grande problema na animação dos macacos está no roteiro, com tantos furos que parece uma peneira.
Esse roteiro é tão ruim que estou tendo infarto! 

Senão vejamos. O DVD que tenho mostra a história aparentemente no segundo capítulo. A cronologia dos filmes é totalmente esquecida e é como se pela primeira vez uma nave fosse parar no planeta dos macacos. Um dos astronautas está sendo levado pelos gorilas, outro foi salvo por uma mulher selvagem. Uma vez na cidade, o astronauta foge. Todos, absolutamente todos os soldados macacos vão atrás dele, mas mesmo assim ele foge com facilidade impressionante e ainda encontra tempo para libertar todos os humanos presos pelos gorilas, pois encontra a prisão sem guarda. Aparentemente os macacos não aprenderam nada de segurança depois de tanto tempo...
Mas continuemos. Em uma seqüência posterior, os dois astronautas estão vistoriando uma região de montanhas quando vêm um grupo de militares simiescos se aproximando. A cena mostra o humano loiro encostado numa pedra, olhando displicentemente para a frente: “Parece que os macacos estão nos procurado”. E outro: “Se nos virem aqui, estamos ferrado!”. Qualquer um sairia correndo para se esconder, mas eles ficam lá parados, olhando o tempo. “É, parece que eles nos viram”. “Poxa vida, isso é horrível”, dizem eles, sem sair do lugar. 
Proatividade parece ser uma palavra desconhecida para esses dois homens. Fiquei imaginando a continuação do diálogo: “Eles estão a um quilômetro!” “Nossa, logo eles não vão nos alcançar se não corrermos”, “Agora eles já estão a cem metros!”, “Vamos fazer um lanche?”.
Vamos continuar procurando a lógica dessa história! 

Mas os nossos heróis são salvos por uma montanha que se eleva na frente deles, escondendo-os, um artifício que os bons roteiristas chamam de Deus ex machina. Essa expressão significa algo exterior à história, que surge para salvar a situação. É chamada assim porque os dramaturgos gregos ruins constumavam baixar um deus no final da peça para costurar as pontas soltas ou para explicar situações não muito lógicas. Um Deus ex machina é quando o roteirista arranja uma saída totalmente desconhecida do leitor para salvar os heróis ou para resolver uma situação. É erro gravíssimo.  
Depois dessa tremenda forçada de barra, os heróis ainda encontram uma porta secreta, por onde chegam ao mundo dos humanos subterrâneos. Nisso eles descobrem que estão na terra. O desenho foi feito no final da década de 1970, uma época em que todo mundo já sabia disso, mas mesmo assim o desenho faz um suspense desnecessário sobre isso.
Os expectadores nunca vão desconfiar que estamos na Terra. Vamos tomar um café? 

No mundo dos subterrâneos eles encontram a terceira astronauta e fogem com ela num carrinho que corre por um trilho. Os subterrâneos têm duas formas de defesa: uma são ilusões, outra são raios emitidos pelos olhos. Então eles primeiro fazem aparecer uma parede de mentira e os heróis acham que vão bater, mas passam direto por ela. Depois acham que vão cair num buraco, mas, mais uma vez descobrem que é uma ilusão. Então eles se deparam com uma parede de fogo. Qualquer pessoa que tivesse passado pelas experiências anteriores aprenderia o bastante para saber que a parede é também uma ilusão, mas os nossos astronautas são burros como uma porta e morrem de medo do fogo. Quando passam por ele e descobrem que estão vivos, comentam entre si: “Quem diria, é uma ilusão!”. Será que eles aceitam pessoa com QI 0,1 na NASA?
O teste de QI mostra que os astronautas da NASA são mais burros que nós! 

Enquanto isso, os subterrâneos atiram neles com seus raios... e não acertam nada, nem os trilhos, nem os humanos, nem o carrinho. São quase cinco minutos de tentativa e nada. Uma impossibilidade matemática! Isso nos faz pensar que os subterrâneos aprenderam a atirar com um cego paralítico e epiléptico. Não acertar em absolutamente nada durante cinco minutos de tiroteio é mais difícil que ganhar na loteria, mas eles conseguem e os astronautas saem de lá sem um único arranhão.
O pior de tudo é que o episódio foi escrito por dois roteiristas. Será que nenhum deles percebeu os buracos no roteiro?

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A trilha sonora perfeita para uma história de horror amazônico

Texto narrativo – texto redundante



Algo fundamental, uma das primeiras lições para um futuro roteirista de quadrinhos, é que o texto nunca deve ser redundante. Em outras palavras, nunca se deve dizer com as legendas ou com os diálogos aquilo que o leitor está vendo.
Mas algumas pessoas confundem texto redundante com texto narrativo. Embora possam parecer semelhantes, não são. O texto narrativo, embora não explore toda a potencialidade dos quadrinhos, não chega a ser um erro. Já o texto redundante se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo é erro feio.
Imagine uma cena: um casal andando pelo deserto em pleno dia, o sol acima deles e nada por perto além da areia escaldante.
Um texto narrativo possível para a cena seria: “O casal andou por horas a fio sob o céu escaldante sem encontrar um único indício de vida ou civilização. Se não encontrassem logo água, iriam morrer no deserto”. Observe que há várias informações incluídas no texto que não aparecem na imagem (o casal está andando por horas, não encontraram sinal de vida em toda a caminhada, logo vão morrer de sede).
Um texto redundante sobre a mesma cena seria: “O casal anda no deserto sob o sol escaldante”. Neste caso, o texto se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo, sem acrescentar nada à informação visual.
Percebam como o texto redundante se limita a descrever a imagem que está sendo vista pelo leitor. Ou seja, é totalmente desnecessário.
Um exemplo de texto redundante pode ser encontrado na página da série Os Eternos, de Jack Kirby, publicada em Superaventuras Marvel 25.
Observe os dois primeiros quadrinhos. Eles mostram a nave dos desviantes entrando por uma cabeça de pedra e singrando em direção a uma abertura luminosa. O que o texto diz? O que o leitor está vendo: “Logo uma enorme cabeça de pedra surge à sua frente. Penetrando pela boca do dragão, a nave avança rumo a uma abertura luminosa”.

Um outro exemplo de texto redundante pode ser encontrado na versão quadrinística da história A torre do elefante, com textos de Roy Thomas e desenhos de John Buscema. Conan e outro ladrão estão no pátio da torre quando encontra com cinco leões. O diálogo diz: “Leões! Cinco deles!”.
Curiosamente, na mesma página há um exemplo de ótimo uso do texto quadrinístico, inclusive como elemento de suspense. O ladrão nemédio empurrou Conan para trás, fazendo com que ele parasse. O texto diz: “Seu olhar está fixo em arbustos poucas jardas à frente... arbustos que continuam se movendo, embora o vento tenha morrido”. O texto narra a aproximação de algo que o leitor não é capaz de identificar visualmente (só depois, no quadro de impacto ele descobrirá que são leões).

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Superman e a arma de Tcheckov



Anton Tcheckov foi um dos principais escritores russos e um dos contistas mais importantes de todos os tempos. Ele formulou um princípio narrativo básico segundo o qual, “Se você diz no primeiro capítulo que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro capítulos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá”.
Esse princípio, que passou a ser chamado de A arma de Tcheckov é tanto uma lembrança da importância da simplicidade narrativa (deve-se evitar colocar na trama algo que não terá importância) quanto uma boa dica sobre o que, nos quadrinhos, chamamos de gancho. Ela também poderia ser formulada da seguinte maneira: “Se no segundo capítulo alguém vai disparar um rifle, no primeiro capítulo essa arma deve aparecer pendurada na parede”.
Algo que é simplesmente jogado na trama, sem ter uma razão narrativa pode parecer para o leitor como uma ponta solta. Por outro lado, se algo relevante para a trama não é mostrado antes, pode parecer um deus ex machina. Exemplo: uma mulher está sozinha em casa. Entra um estuprador. Ela pega a arma para se defender. Se a arma não foi mostrada antes, vai parecer que aquele objeto surgiu do nada, um deus ex machina.
Um ótimo exemplo de bom uso da arma de Tcheckov é o segundo capítulo da série Grande Astros Superman, com roteiro de Grant Morrison e arte de Frank Quitely.
Na história, Superman, sabendo que vai morrer, leva Lois Lane para a Fortaleza da Solidão. Mas há algo misterioso acontecendo e a repórter pode estar em perigo.
Logo no início, o Homem de aço mostra alguns tesouros de sua coleção, incluindo uma arma de raio laser de kryptonita. Na sequência seguinte, Lois vê uma sala aberta e tenta entrar, mas é impedida pelo Superman, que lhe diz: “Vá aonde quiser nessa fortaleza, mas considere essa sala proibida”.
Sozinha, Lois começa a se indagar se os novos poderes não mexeram com a personalidade do herói: “E se ele ele estiver com algum problema mental e me trouxe para fazer parte de algum experimento macabro que prepara naquela sala?”. Temendo isso, ela decide que precisa se preparar. O que ela faz? Vai na sala de troféus e pega a arma que foi mostrada logo no início da história!
O exemplo pode dar a entender que a arma de Tcheckov se aplica apenas a pistolas, rifles e espingardas, sejam elas convencionais ou tecnológicas.
Mas não.
Na própria história analisada temos um outro exemplo de utilização desse princípio: a sala proibida que Lois tenta entrar. Há ali diagramas femininos que a fazem pensar que se trata de uma experiência científica que teria ela como objeto.
No final, entretanto, Superman explica o que aconteceu: “Parece que o robô 7 teve um problema de processamento de dados. Ele deixou a porta do laboratório aberta enquanto eu sintetizava uns compostos alienígenas. Gases que podem induzir distorções visuais e reações paranoicas extremas”.
Se voltarmos à página em que isso acontece, de fato há uma espécie de nuvem de gás azul saindo da sala e envolvendo Lois Lane. Esses gases saem de um frasco de vidro à frente do robô.
E a explicação para os diagramas femininos era simples: Superman estava produzindo uma roupa extremamente tecnológica para Lois, adaptada inclusive ao seu código genético para que ela tivesse um dia como super-heroina.
Tudo estava ali, desde o princípio, bem claro, na frente do leitor. Como o rifle de Tcheckov.  

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