quinta-feira, 25 de julho de 2019

Roteiro para quadrinhos: a ambientação

Um aspecto importante na construção do roteiro é a ambientação. É necessário imaginar onde o personagem  vive, com quem ele se relaciona, como ganha a vida, etc...A ambientação vai acabar, inclusive, influenciando no modo de pensar e agir dos personagens.  Pessoas que vivem num ambiente árido acabarão tendo um comportamento árido (os tuaregs que o digam). Isso é muito claro, por exemplo, na série de álbuns Aldebaran: os personagens vivem num mundo quase completamente dominado pela água. Quando vão para um mundo desértico, tudo muda, inclusive os aspectos culturais. 
                Uma de minhas histórias chamada Vácuo mostra um tripulante de uma estação espacial que se revolta e acaba explodindo todo o local. A claustrofobia provocada  pelos eternos corredores, pelos ambientes fechados, fizeram com que ele "pirasse". Essa mesma ambientação poderia ter o efeito oposto em outro indivíduo. Sentido-se confortável e seguro dentro de um ambiente fechado, ele poderia se sentir um agorafóbico.

                Um exemplo mais famoso: o Batman de Cavaleiro das Trevas é violento porque a Gothan City criada por Frank Miller é violenta.
                Também é importante saber o máximo possível sobre o local em que se vai passar a história. Antes de começar a escrever o tenente Blueberry, Charlier viajou para os EUA e visitou toda a região em que se passaria a HQ. Se você for escrever uma história sobre o Egito e não tiver dinheiro para a passagem, a melhor alternativa é entocar-se na biblioteca e ler tudo o possível sobre os hábitos, costumes e acidentes geográficos da região. Alan Moore conta que, antes de começar a escrever Monstro do Pântano, leu tanto sobre a Flórida que acabou descobrindo algumas coisas curiosas: "Eu sei, por exemplo, que os crocodilos comem pedras pensando que são tartarugas e depois não conseguem digeri-las e essa deve ser a razão pela qual eles têm um temperamento tão irascível", diz.

                Criar uma história que se passe no futuro, num planeta longínquo, ou em um planeta atualmente desconhecido pode livrar você da visita à biblioteca, mas certamente não vai facilitar as coisas para sua imaginação. É necessário, nesses casos, imaginar todos os aspectos dessa sociedade: quem governa, se é que há governo, como as pessoas vivem, quais são os seus costumes, como elas se alimentam...
                Um exemplo fantástico de criação de ambiente é o álbum A Fonte de Cyann, de Bourgeon e Lacroix. Os autores criaram não só uma história para o planeta em que se passa a HQ como, ainda, se preocuparam com detalhes mínimos. Tipo: o lugar da letra O no nome da pessoa determina a classe social.
                Em Cian, quando pessoas importantes morrem, seus corpos são envoltos em barro e jogados no mar. Quanto mais pessoas se unem para impedir a parte final do ato funerário, mais querido era o defunto. Detalhe: a língua falada pelos personagens, embora muito semelhante ao francês, tem suas próprias regras. Para desespero dos tradutores!
                Portanto, se você quiser escrever boas histórias de Ficção científica, ou de fantasia, comece a ler desde já livros de antropologia...

terça-feira, 23 de julho de 2019

Deixar o texto dormir

A pior estratégia para revisar um texto e fazê-lo logo depois de escrevê-lo. Seu cérebro ainda está com o conteúdo na cabeça e tende a completar o texto, muitas vezes até mesmo corrigindo erros ortográficos. Além disso, é difícil ser crítico a respeito de seu próprio trabalho quando se acabou de escrever. 

Existe uma técnica chamada "deixar o texto dormir". Ou seja: escrever e retornar ao texto apenas no dia seguinte. Se não há urgência, podemos dar um tem
po ainda maior, até mesmo meses.
 
Essa distância faz com que o cérebro de certa forma se esqueça do que foi escrito.

Assim, lemos o texto como se fosse escrito por outra pessoa. Já me aconteceu, por exemplo, de roteiros que eu achava ótimos enquanto estava escrevendo me parecerem horríveis e cheios de falhas com o distanciamento do tempo. Por outro lado, roteiros que eu já desistira, por considerar que não eram bons (ou não conseguia bons finais), acabaram sendo aproveitados depois de ter deixado o texto dormir.

Um exemplo disso foi a história em quadrinhos Turma da Tribo. Eu sempre quis fazer algo no estilo Asterix, história em quadrinhos da qual sempre fui fã. E escrevi algumas páginas, de apresentação dos personagens, e abandonei. Não parecia ter futuro e, apesar de ter os personagens e um foco narrativo, não tinha trama. Anos depois, quando conheci Ricardo manhaes, que tinha um estilo totalmente franco-belga, fui reler aquelas primeiras páginas. A história, que no primeiro momento, parecia difícil de ser escrita, depois de alguns meses praticamente se escreveu sozinha.

domingo, 21 de julho de 2019

Tom´s Bar

Ivo Milazzo e Giancarlo Berardi conquistaram uma fiel legião de fãs brasileiros com o personagem Ken Parker. Lançado aqui no início dos anos 80 pela editora Vecchi, Parker se destacava por ser um herói humano em uma época em que todos os caubóis dos quadrinhos eram estereotipados. O personagem foi publicado por várias outras editoras, inclusive a Mythos, que fechou a série recentemente, publicado a última aventura do chamado "Rifle Comprido". Agora a dupla de autores está de volta com Tom's Bar, editado pela Opera Graphica.

Em Tom's Bar o ambiente é a Chicago dos anos 40. O personagem principal é o Tom do título, um homem já idoso, que guarda segredos sobre seu passado.

O álbum reúne quatro histórias envolvendo Tom e o Bar. Parece monótono, mas não é. Berardi quer nos mostrar que por trás de um homem e um ambiente simples, sem glamour, há grandes histórias.

O primeiro conto, "Quase Sempre" é uma introdução e uma declaração de princípios. Um jornalista visita o bar e reclama de que já não há mais fatos interessantes para os jornais: "Devia aparecer outro Al Capone para aumentar a tiragem". Tom concorda: "É, bons tempos aqueles!".

Enquanto o jornalista toma um drinque, Tom sem que o último veja, se resolve com um gangster que veio cobrar proteção.

Ou seja: os fatos interessantes, assim como as pessoas interessantes, estão debaixo de nossos narizes. Basta ter olhos para ver.

Tom não é um herói bidimensional. Tem coração, mas também tem contradições. Ao mesmo tempo em que vende armas, evita que um garoto se envolva no mundo do crime.

Ler Tom's Bar é como ver um fractal (figura geométrica que representa fenômenos caóticos): à medida em que nos aprofundamos nos personagens, eles nos revelam novas complexidades.

Além do texto de Berardi, vale destacar a arte de Milazzo. Toda realizada, em aguada, a história é um colírio para os olhos cansados de ver histórias pintadas em computador.

A aguada é feita de nanquim misturado com água. Dá um efeito semelhante ao da aquarela, mas em preto e branco. É uma arte perdida. Com a popularização da impressão em cores e a difusão dos computadores, poucos artistas da atualidade sequer sabem o que é uma aguada. Milazzo sabe, e muito bem.

A técnica usada nos desenhos não é gratuita. A aguada dá à história um toque nostálgico de filme noir dos anos 40. Além disso, as angulações usadas por Milazzo também são muito cinematográficas.

Tom's Bar é um álbum indispensável para que gosta de quadrinhos, mas já está cansado de heróis com cuecas do lado de fora das calças.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Roteiro de quadrinhos: o tema da história


Alan Moore sugere que a melhor maneira de começar uma história é pela idéia, ou tema. O tema é aquilo sobre o que a história fala. Dou um exemplo literário: A Causa Secreta, de Machado de Assis, tem como tema a crueldade inata de algumas pessoas que se deliciam com a desgraça ou o sofrimento dos outros.
                V de Vingaça é uma história sobre o anarquismo em confronto com o totalitarismo.
                A Queda de Matt Murdock, de Miller e Mazzuchelli, é uma história sobre loucura  e decadência e sobre a incrível capacidade humana de vencer todas as adversidades.
                O tema não é o mesmo que a trama da história. Bom lembrar que a maior parte das HQs de super-herói não possui um tema. No máximo, podem ser história sobre a luta entre o bem e o mal.  E, no entanto, os super-heróis apresentam grandes possibilidades de desenvolvimento de temas.
                O roteirista Kurt Buziek e o desenhista Alex Ross aproveitaram a saga dos X-Men para contar uma história sobre o preconceito em Marvels.             
                Talvez seja mesmo mais fácil imaginar um assunto que seria importante desenvolver antes de começar o roteiro. O resultado mais freqüente desse expediente é dar mais consistência à sua trama.

domingo, 14 de julho de 2019

Odisseia cósmica


Todos que conhecem um pouco mais de quadrinhos sabem que Thanos é uma cópia de um vilão da DC, Darkside, criado por Jack Kirby quando este revolucionou a editora na década de 1970.
Em 1988, Jim Starlin, criador de Thanos e grande mestre das sagas cósmicas estava na DC Comics. Era a oportunidade de trabalhar com a versão original de seu vilão.
Starlin imaginou uma grande saga estelar em que alguns dos mais poderosos heróis da DC se unem a Darkside para enfrentar a ameaça absoluta da anti-vida.
Starlin fazendo uma grande saga cósmica com personagens da DC é um velho sonho dos leitores e não decepciona. Como nessa época ele já estava diminuindo sua atividade como desenhista, foi chamado um artista que na época era uma estrela em ascenção: Mike Mignola. A junção desses dois grandes astros nos deu um dos poucos crossoveres realmente divertidos dos quadrinhos de super-heróis.
Mignola sabe dar peso às imagens, usando e abusando dos contrastes, o que é particularmente eficaz nas cenas do universo da anti-vida. Ele nitidamente não conseguiria desenhar diversos heróis em um único quadro (o que é uma especialidade de George Perez), de modo que Starlin, de maneira inteligente, escolhe um pequeno time de personagens para combater os espectros da anti-vida que escaparam para nosso universo, indo cada um para um mundo com o objetivo de destruí-lo. Algumas escolhas fazem todo o sentido, como Super-homem, Lanterna Verde, Estelar e Orion. Outras parecem forçadas por decisões editoriais, como o Batman, que parece deslocado numa saga cósmica. Mas, como bom roteirista, Jim Starlin dá um jeito de fazer com que o personagem se torne relevante na HQ (ele havia feito a mesma coisa com o Homem-aranha na saga de Thanos).
Aliás, Starlin consegue equilibrar perfeitamente a trama, sem fazê-la pesar demais para personagens como o Super-homem. Todos os personagens têm um bom desenvolvimento – inclusive melhor do que normalmente se fazia com eles à época.
Essa história foi lançada na década de 1990 pela editora Abril e em 2015 foi relançada pela Panini em volume encadernado com capa metalizada.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

The Spirit – as novas aventuras

Spirit é um dos mais queridos e mais clássicos personagens dos quadrinhos. Criado por Will Eisner na década de 1940, o personagem revolucionou a narrativa gráfica esbanjando as potencialidades da linguagem e criando recursos únicos, como prédios que formavam o título da história ou o nome do personagem. Além disso, a série revolucionou ao focar não só no protagonista, mas principalmente em personagens secundários, o que dava um toque muito humano à série.
Por ser um personagem autoral, Eisner não autorizava que a editora que publicava o personagem desde a década de 1970, a kitchen, fizesse histórias do herói com outros autores.
Em 1998 o editor convenceu o Eisner a finalmente permitir uma publicação com vários autores mostrando suas versões do personagem. O resultado é o álbum publicado pela editora Devir.
O resultado é irregular. Algumas histórias conseguem captar a essência inovadora do personagem – outras são simplesmente histórias do personagem.
Entre o melhor da edição estão as histórias escritas por Alan Moore e desenhadas por Dave Gibbons, que abrem a edição. As duas HQs interligadas conta a origem de dois dos principais vilões do Spirit: O Cobra e o Octopus. As duas, ao focarem nos vilões, exploram seus lados humanos, inclusive com as contradições entre as duas narrativas. A ironia entre o que ambos relatam e o que de fato acontece cria alguns dos melhores momentos dessas HQs.
A dupla ainda entrega outra história genial, agora sobre o assistente do Doutor Cobra, que teria morrido na primeira história do Spirit. Moore, como sempre, costura tudo, aproveitando as pontas soltas das histórias originais.
Outro ponto alto do álbum é “Domingo no parque com São Jorge”. O desenho underground de Dan Burr se encaixa perfeitamente com a narrativa de Jim Vance sobre o dia em que Spirit foi convencido a descansar no parque – o que, claro, o coloca em uma tremenda confusão.
Temos ainda Neil Gaiman fazendo o que Neil Gaiman sempre faz: uma história sobre um escritor escrevendo algo que se entremeia à narrativa. No caso, um roteirista de cinema que tenta escrever um roteiro policial e se depara com o Spirit investigando um caso real. Apesar do clichê a la Gaiman, é uma HQ divertida.

Pequenas obras-primas

Dia desses ouvi de uma pessoa que quer fazer quadrinhos que é impossível fazer uma boa HQ com menos de 12 páginas. Na hora eu me lembrei de uma frase do editor Franco de Rosa. Na época existiam revistas mix, como a Calafrio, que publicavam histórias curtas. Eu reclamei com o Franco que era difícil fazer uma boa história em 6 páginas. Ele me respondeu: Will Eisner fazia obras-primas com 6 páginas.
É verdade. As histórias do Spirit tinham 6 páginas e eram todas geniais, tanto em termos de roteiro quanto de desenho. Eram HQs tão boas que mudaram a cara dos quadrinhos, mostrando até onde podia ir a linguagem.
Não é o único exemplo. A EC Comics, na década de 1950 fazia histórias de terror e ficção-científica com 7 ou 8 páginas e o nível era altíssimo. Era uma das melhores coisas feitas na época.
Na década de 1970 um dos maiores sucessos no Brasil era a revista Kripta, que reunia histórias curtas de terror, fantasia e FC, todas com menos de 10 páginas. O nível alcançado por essa revista raramente foi ultrapassado. Os roteiristas conseguiam em 7 ou 8 páginas fazer histórias complexas, personagens com profundidade psicológica e textos poéticos.
São só alguns exemplos. Mesmo no caso de histórias seriadas há muitas que tinham capítulos curtos auto-contidos. Miracleman, por exemplo, era pulicada na forma de capítulos auto-contidos. Se você lesse um capítulo, entendia.
Na minha época ninguém se transformava em quadrinista sem aprender a arte da síntese.
Hoje, toda uma geração está crescendo lendo mangás que nunca acabam ou mega-sagas da Marvel e da DC em que o roteirista leva 600 páginas para contar uma história que um roteirista realmente bom, como Alan Moore, contaria em 20 páginas. 
Está surgindo uma geração de quadrinistas que perdeu a capacidade da síntese. Lamentável.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Tom Strong - nos confins do mundo

O último volume da série Tom Strong volta a trazer roteiristas e artistas convidados (com a volta de Alan Moore na última história). O grande destaque sem dúvida é a participação de Michael Moorcock, famoso escritor de fantasia, criador do personagem Elric. 
Moorcock coloca o herói em uma história de piratas dimensionais. Há várias referências aí: o investigador metatemporal que contata Tom Strong é nitidamente uma referência ao Dr. Who e o vilão da história parece ter saído diretamente Melniboné (a ilha de Elric). O desenho de Jerry Ordway se encaixa perfeitamente na narrativa, com um traço mais sujo que a média da seríe. Steve Moore constrói uma HQ explorando os elementos pulp fiction do personagem. Joe Casey escreve uma história em que Pneuman começa a assumir comportamento estranho para um robô e Peter Hogan costura uma ponta solta da série.
E, claro, temos a volta de Alan Moore, na última história, interligada com a saga final de Promethea. Alan Moore é Alan Moore, de modo que mesmo que as outras histórias sejam boas, esta é um salto de qualidade no texto, a ponto de tornar interessante uma HQ em que nenhuma ação de fato acontece (embora o final nos reserve uma grande virada).

Objetos que são importantes na trama

A estatueta de um falcão é o que move a trama na história O falcão maltez.

Alguns objetos são fundamentais em determinadas tramas de quadrinhos.
Uma forma mais simples de uso de objetos num roteiro é o Mcguffin.
Mcguffin é aquele objeto que representa os anseios dos personagens, aquilo que o personagem e seus antogonistas querem.
Um exemplo clássico de Mcguffin é o romance policial O falcão maltez: a pequena estatueta na forma de falcão é algo que todos procuram e que provoca vários assassinatos. O desafio do detetive é descobrir o que está acontecendo e por que o falcão é um objeto tão importante (no final, descobre-se que há uma jóia dentro dele).
Os filmes de Indiana Jones sempre têm algum tipo de Mcguffin, seja a arca sagrada ou a caveira de cristal.
A caveira de crital é um exemplo de Mcguffin

Outro uso de objetos é o Leitmotiv.
Originalmente o Leitmotiv, ou motivo condutor, era uma música ou trilha que se repetia sempre que um personagem entrava em cena, caracterizando-o. Por exemplo, no filme M - O vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, o assassino de crianças é sempre mostrado assoviando uma canção. Isso vai ser fundamental para a trama, pois irá permitir que um mendigo o indentifique.
Mas, como o desenvolvimento da dramaturgia, objetos também começaram a ser usados como lenimotiv, caracterizando personagens ou caracterizando mudanças em suas personalidades.
Um exemplo clássico de objeto como motivo condutor são os suspensórios no filme A montanha dos sete abutres.
Na história um jornalista sem escrúpulos chamado Charles Tatum acaba procurando emprego em um pequeno jornal do interior dos EUA depois de ser demitido de todos os grandes jornais. Logo na cena inicial, em que pede o emprego, ele percebe que o editor usa cinto e suspensórios, um indício de que ele é alguém que sempre checa as informações duas vezes, uma atitude refletida no quadro sobre seu escritório: “Diga sempre a verdade”.
Os suspensórios representam a ética jornalística em A motanha dos sete abutres

Na cena seguinte vemos Tatum usando suspensórios, uma representação de que ele se adequou ao perfil ético do editor. Algum tempo depois ele descobre um homem preso em uma caverna e resolve usar o caso, aumentando o tempo de prisão do homem para conseguir voltar para os grandes jornais. Em determinado ponto ele tira os suspensórios e os joga no lixo. Esse gesto demonstra que, a partir daquele ponto ele abandona toda a ética e será capaz de fazer qualquer coisa para conseguir sucesso, incluindo seduzir a esposa do homem preso na caverna.
Mas, seja um Mcgufin ou um Leitmotiv ou qualquer outra função que um objeto importante tenha em cena, deve-se saber lidar com esse objeto, é preciso deixar claro ao leitor que aquele objeto é importante, para que ele o reconheça.
Vamos a um exemplo de uma história policial.
A solução de quem matou o prefeito está dentro de um livro na casa do mesmo. Os policias revistam tudo, mas não olham dentro do livro.
O roteirista inteligente vai dar destaque para esse livro. Vai mostrar um plano detalhe do mesmo, ou vai colocá-lo em primeiro plano enquanto os policiais procuram uma pista e um deles diz que não estão achando nada. Mas é essencial dar destaque para o livro, ser mostrado ao leitor. Não vale o livro surgir do nada, no final da HQ, com a solução do caso.
Imagine, no entanto, que por alguma razão, a solução do assassinato deve se dar na prefeitura. Por mais que tenha sido mostrado o livro antes, não faz sentido ele ter desmaterializado da casa do prefeito e surgido providencialmente na prefeitura na hora em que o crime é desvendado. É preciso mostrar, por exemplo, alguém levando para a prefeitura. Alguém, por exemplo, pode ter pegado para ler e esqueceu na prefeitura. Ou mesmo o detetive pode ter se apossado dele para usá-lo no momento certo.
Imagine mais uma outra situação: a casa do prefeito pegou fogo após o assassinato. Depois o livro, que estava na casa do prefeito, aparece em outro lugar. O leitor vai pensar: “Ué, o livro estava na casa que pegou fogo, o livro não tinha sido queimado?”. O roteiro vai precisar explicar como o livro se salvou.
Em suma: se um objeto é fundamental para a sua trama, dê destaque a ele para que o leitor perceba essa importância e justique tudo relacionado a esse objeto.

sábado, 6 de julho de 2019

Roteiro de quadrinhos: diálogos

Como os textos, há vários tipos de diálogos e várias técnicas. Eis alguns tipos:
Frank Miller usou a técnica do diálogo realista em Cavaleiro das Trevas

Diálogo realista  - um dos principais problemas é como construir um diálogo realista. Alguns roteiristas costumam colocar termos chulos, palavrões, na boca dos personagens.  Howard  Chaykin costuma fazer isso. De fato, isso dá uma impressão de realismo, pois as pessoas normalmente falam palavrões. O problema é que nem todas as pessoas falam palavrão e mesmo as que falam não o fazem o tempo todo. Então, como construir um diálogo realista? Há algumas técnicas. A principal delas é a do corte. Consiste em cortar o diálogo, mudando de assunto.  Isso é muito comum na linguagem do dia-a-dia. Nem mesmo as pessoas mais compenetradas passam mais do que alguns minutos falando de mesmo assunto. O processo natural de um diálogo é feito de cortes: uma idéia puxa outra, que puxa outra, que puxa outra, etc...Assim, começamos falando de vacas e terminamos falando de Platão.

Neil Gaiman usou a técnica do diálogo literário em Sandman. 

Diálogo literário - Um diálogo bom não é necessariamente realista. O diálogo literário é mais trabalhado que o realista, mais pomposo. Certos personagens pedem um diálogo mais literário (ou teatral). O Shakespeare que aparece nas histórias de Sandman fala de uma maneira bastante literária ou teatral porque é assim que se imagina Shakespeare falando.

Os monólogos do Surfista Prateado se tornaram célebres.

Monólogo - O monólogo é quando um personagem detém a palavra durante muito tempo. Há um recurso parecido com o do corte, que se usa para monólogos. É a técnica do aposto. Aposto é quando você coloca uma frase dentro de uma frase (os apostos costumam vir separados do resto da frase por vírgulas). Num monólogo a técnica consiste em aproveitar um detalhe da frase e estendê-lo, voltando só depois para o assunto principal. Monólogos memoráveis eram os do Surfista Prateado, escrito por Stan Lee, como este, retirado do sexto número da revista do personagem: "Até quando devo continuar aprisionado no selvagem planeta Terra? Quanto tempo suportarei até que solidão me destrua? Não, este não pode ser o meu destino eterno! Não foi para isso que renunciei a meu mundo, minha vida e meu amor! Por certo, em todo o universo não pode haver ironia mais cruel do destino! Eu, que detenho um poder além da compreensão... estou fadado a viver confinado e sem esperanças... tal qual o mais frágil dos animais! ".
                As informações sobre Maria não fazem parte da história, mas dão um tom mais realista ao monólogo. Pessoalmente, considero Benedito Rui Barbosa, autor da novela Renascer um ótimo autor de monólogos. E o principal recurso usado por ele é o do aposto.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Família Titã


Em 1992 eu o compadre Joe Bennett já éramos parceiros de longa data. Foi quando o editor Franco de Rosa nos pediu 30 páginas de uma história em quadrinhos para uma revista erótica.
 O problema era o prazo: uma semana para fazer tudo: roteiro, desenho, arte-final, balonamento, tudo. Verdadeiramente insano. O prazo era tão curto que o Bené mal desligou o telefone e já começamos a criar a história.
Contrariando o pedido, fizemos uma HQ de super-heróis (que tinha apenas duas cenas eróticas). E era algo bem diferente, bem na linha da dupla Gian-Bené: uma homenagem à Família Marvel (hoje conhecida como Shazan), mas era também uma história de vingança.
Íamos criando a HQ e o Bené já ia fazendo o rafe das páginas. Quando terminou, eu coloquei o texto. No final, foi tudo tão corrido que não tivemos tempo para conversar sobre a história. Assim, na minha cabeça, o protagonista Tribuno era um herói, e na cabeça do Bené, era um vilão.
O Franco, quando recebeu, deve ter pensando o que fazer com aquela HQ, mas acabou publicando assim mesmo numa revista erótica. O sucesso foi tão grande que a história acabou sendo publicada em outro gibi.
No final, a família Titã foi publicada em 5 revistas, cada uma com tiragem de 30 mil exemplares. 150 mil exemplares no total – mais do que a vendagem mensal do Homem-Aranha na época.
Pouco depois um caçador de talentos esteve no Brasil procurando desenhistas para o mercado americano e, quando viu a Família Titã, teve certeza de que Bené era o cara certo (hoje ele desenha uma premiada fase do Hulk).
E a história virou cult. Uma das razões se deve ao fato de que não tivemos tempo para conversar sobre o seu significado: então, para alguns leitores, o protagonista é vilão e para outros é um herói. Essa tridimensionalidade dos personagens se tornou o grande charme da história.  
Em 2014 a editora Opera Graphica republicou a Família Titã, agora no formato de álbum, com textos, biografia dos autores e desenhos do Bené.  

terça-feira, 2 de julho de 2019

O Marvel Way

O marvel way é uma modalidade de roteiro em que o roteirista discute com o desenhista, ou lhe entrega uma sinopse, e este desenha as páginas, que são posteriormente devolvidas ao roteirista para que sejam colocados os textos e diálogos. É chamado assim porque foi um método criado por Stan Lee e utilizado por todos os roteiristas da casa das ideias. Há um grande preconceito contra o marvel way. Uma pessoa, por exemplo, me dizia que Stan Lee não era co-autor das histórias, uma vez que ele se baseava no desenho pronto.
Houve uma época, nos primórdios dos quadrinhos em que o texto era realmente redundante com relação à imagem e até desnecessário. Arte: Antonio Eder

Essa visão equivocada e preconceituosa parte da ideia de que o texto é apenas um complemento do desenho numa história em quadrinhos. Isso podia até ser verdade nos primórios dos quadrinhos, quando o desenho mostrava o herói batendo no bandido e o texto dizia: "O heroi bate no bandido". Da Marvel para cá, o texto tem se caracterizado por permitir uma outra leitura do desenho, muitas vezes resignificando-o, como aconteceu com o Surfista Prateado, que era apenas um arauto de Galactus e, com o texto de Lee, tornou-se uma espécie de filósofo interestelar:  ¨Quando chegou a hora de estabelecer o seu padrão de discurso, comecei a imaginar de que forma um apóstolo das estrelas se expressaria. Parecia haver uma aura biblicamente pura no nosso Surfista Prateado, algo altruísta e magnificamente inocente¨. Isso é chamado de resignificar e é um princípio básico da arte moderna e pós-moderna. 
Eu usei muito o Marvel em todas as histórias que escrevi com o compadre Joe Bennett. Nós discutíamos a história, o Joe muitas vezes fazia o rafe na minha frente e eu colocava o texto em cima do rafe. 
Era sempre um desafio, pois Joe Bennett é da escola de Jack Kirby, John Buscema e Garcia Lopez, todos grandes narradores visuais. Ou seja: ele parecia contar toda a história apenas com imagens. Então logo descobri que meu texto deveria criar uma camada a mais de leitura e interpretação. 
Uma das páginas que, lembro, me deram muito trabalho, foi a cena da história O farol. Na história, um casal de namorados encontra um farol desconhecido em uma praia deserta e decide investigar. Quando estão lá dentro, acabam se perdendo (não, não vão contar o resto). Na sequência abaixo, Fábio se separou de Cassandra e vai se desesperando aos poucos ao não conseguir encontrar a saída. Lembro que quando peguei a página rafeada, pensei: "Caramba, o que vou colocar aqui? O Joe já contou tudo com desenhos!". No final, o texto cria uma camada a mais de leitura, permitindo que o leitor conheça o personagem, sua história de vida e motivações. E, claro, termina com uma ironia, que só funciona em conjunto com o desenho... 

Na história A Família Titã, eu o Joe não tivemos tempo para conversar sobre os detalhes da história. O compadre precisava de dinheiro urgente e o Franco havia nos pedido 30 páginas para duas semanas, com tudo pronto. Algum tempo depois, descobrimos que, para o Joe, o Tribuno era o vilão, afinal o desenho o mostrava praticando as mais terríveis barbaridades. Mas para mim ele era o heroi, e o texto justificava suas ações, dando uma motivação para o personagem. E até hoje muitos leitores fãs da dupla debatem se ele é um vilão ou um heroi. Eis um exemplo de  como texto e desenho podem permitir várias leituras de uma obra numa história em quadrinhos.
Na Refrão de Bolero, uma moça viaja para Belém e se encanta com Belém e diz que ela é uma cidade de cartão postal. No final, quando é assaltada e se vê sozinha e perdida, sem dinheiro ou conhecidos numa cidade que de fato não conhece, ela diz: "Agora tudo que eu tenho é um profundo corte na mão e uma cidade de cartão postal". O texto, além de dar um duplo sentido para a expressão "cidade de  cartão postal" (positivo no início, negativo no final), apresenta os sentimentos da personagem de uma forma que o desenho não poderia fazer. Vale lembrar que a ideia da história surgiu quando eu fui assaltado em Belém.
Os quadrinhos, portanto, são uma junção de texto e desenho em que nenhum é mais importante que o outro e a coisa só funciona se houver harmonia entre eles.

Valerian e Laureline

Em 1967 surgia nas páginas da revista Pilote uma série que iria mudar para sempre a ficção científica nos quadrinhos. Chamava-se Valerian – agente espácio-temporal e era produzida por dois novatos, o roteirista Christin e o desenhista Mézières.
Em sua primeira história, que daria origem ao álbum “Maus sonhos”, o desenho ainda parecia simplista e os roteiros ingênuos. Mas já era possível perceber  que havia algo ali, especialmente quando o agente Valerian, em viagem temporal para a Idade Média encontra uma moça, Laureline, que conquista os leitores e se torna personagem fixa da série.
Os artistas eram dois jovens franceses que havia se mudado para os EUA na infância e se reencontraram na adolescência. Com o dinheiro do primeiro álbum eles comprariam sua passagem de volta para o país natal, onde iriam revolucionar os quadrinhos.
O segundo álbum “A cidade das águas movediças” já trazia um traço mais seguro e um roteiro mais bem amarrado, além de referências que mostravam o quanto a obra dialogava com o pós-modernismo. O mafioso Sun Rae foi inspirado no músico de jazz Sun Ra. O cientista Schroeder, além da referência óbvia ao personagem pianista da tira Peanuts, tinha as feições de Jerry Lewis no filme O professor Aloprado.
Mas seria no terceiro álbum, “O império dos mil planetas” que a dupla acertaria a mão, definindo o estilo que os diferenciaria de tudo que havia sido feito até então em termos de ficção científica. Foi nesse álbum que a vocação de Mézières para criar cenários exuberantes se revelou. Também foi nessa história que Christin mostrou sua capacidade de criar civilizações extraterrestres e seus hábitos culturais.
A sequência inicial, mostrando a feira do planeta-império, é primorosa.
Nela descobrimos que mercadores comercializam schalmis, espécie de conchas gigantes, onde as pessoas se recolhem em busca de esquecimento. Conhecemos as pedras vivas de Arphal, que se fixam à pele como as mais belas jóias. Ou os raríssimos spiglics de bluxte, que vivem sobre a cabeça de seus donos, transmitindo a eles perene felicidade através de telepatia.
A série fez tanto sucesso na Europa que Valerian e Laureline, dois nomes que não existiam, tornaram-se populares a ponto de muitos pais batizarem seus filhos com eles.
Outra consequência é mais polêmica. Desde que saiu o primeiro filme de Star Wars, o desenhista percebeu várias coincidências entre o filme e suas imagens publicadas no álbum.
O visual de escrava da princesa Lea no filme “O retorno de Jedi”, por exemplo, é muito parecido com o de Laureline em “O país sem estrelas”. A nave usada pelos personagens é semelhante à Millennium Falcon, além de várias outras semelhanças.
Além disso, a personalidade independente da princesa Lea está muito mais para a Laureline do que para as princesas das histórias clássicas de ficção científica, que ficava paralisadas diante do perigo, esperando serem salvas pelos heróis.
O sonho dos autores de ver sua história adaptada para o cinema irá finalmente se realizar: o cineasta Luc Besson adaptou a história para a telona e previsão de estreia é ainda para este ano.

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