sexta-feira, 31 de maio de 2019

Família Titã - o processo de criação


Família Titã foi uma história em quadrinhos escrita por mim e desenhada pelo Joe Bennett e publicada em diversas revistas da editora Nova Sampa na década de 1990. Eu contei 5 edições diferentes. Com o tempo, virou cult e finalmente foi relançada, no formato de álbum, pela editora Opera Graphica, em maio deste ano. O texto abaixo, um diálogo entre eu e o Joe, deveria constar no álbum, mas acabou não entrando. Nele, nós discutimos como foi o processo criativo e a repercussão da história. Eu tenho exemplares para venda, ao preço de 35 reais já com frete. Quem estiver interessado, basta mandar um e-mail para: profivancarlo@gmail.com. 



Gian Danton: Você lembra como tudo começou? Você recebeu um telefonema do Franco de Rosa pedindo uma história de 30 páginas, não?

Joe Bennet: Sim, ele me pediu uma HQ de 30 páginas para fechar uma edição e queria em no máximo 15 dias.

Gian Danton: Isso. O tempo era muito corrido. Tínhamos que criar algo rápido

Joe Bennett: Sim. Eu na época estava trabalhando somente para o Franco... a Val era um bebê de meses de idade, precisava fazer grana rápido. Eu não tinha nada em mente. No caminho pra tua casa eu fui pensando na família Marvel.

Gian Danton: Você lia muito Família Marvel quando criança?

Joe Bennett: Eu adorava a Família Marvel!

Gian Danton: O irônico é que a Família Marvel é a mais infantil dos super-heróis...

Joe Bennett: Sim..mas estávamos encharcados do Miracleman e fizemos algo muito adulto... Quando eu fui pra tua casa discutir a empreitada eu só estava com a Família Marvel na cabeça. Começamos a falar sobre isso, mas com o Miracleman como guia, como sempre fazíamos. Primeiro nos avacalhávamos, pois sempre fazíamos piadas com nossas ideias.. Éramos muito críticos de nos mesmos. Aí então, após algumas horas, parávamos e víamos que a coisa tava séria...rsrsrs

Gian Danton: A gente sempre se divertia muito, especialmnete nas histórias de terror.

Joe Bennett: Haha! Verdade!

Gian Danton: Você vivia me colocando nas histórias, em piadas internas...

Joe Bennett: HAHHAHA! A melhor de todas ainda é a do cara com agorafobia na PHOBOS (publicada na revista Graphic Sampa) acabou ficando duca aquilo.

Gian Danton: Nessa mesma história aparece um hospício com o meu nome verdadeiro, Ivan Carlo. Mas voltando para a Família Titã, você lembra se a gente teve a ideia de transformar a coisa em uma tragédia grega, ou foi sem querer?

Joe Bennett: Olha cara..na verdade foi por uma consequência de ideias...a gente foi fazendo... criando, e quando vimos aquilo estava denso pacas...a solução era somente uma...TRAGÉDIA. Na verdade..a cena do menage a trois que levou ao final da trama...

Gian Danton: É, naquela cena fica claro que o Tribuno era um pária no grupo. Aliás, só colocamos aquela cena porque precisava ter sexo, mas acabou sendo fundamental.

Joe Bennett: Sim...na verdade ela é fundamental... mas so foi explícita por questões editoriais... Hoje ela aconteceria, mas de forma velada.

Gian Danton: Engraçado que, apesar da influência de Miracleman, o caminho que seguimos foi outro...

Joe Bennett: Sim..o nosso caminho foi até mais realista em nível humano do que o Miracleman. Fomos ao cerne do ser humano ali.

Gian Danton: Nós abordamos mais a interação entre eles. Os personagens que eram realistas, tinham motivação...

Joe Bennett: Sim e eu acho aquela solução do roteiro realista perturbadora...


Gian Danton: Sim, um herói em busca de vingança.


Joe Bennett: Esse nosso tom realista-humanista foi nos levando ate chegar na Refrão de Bolero, concordas?

Gian Danton: Sim, sem dúvida. Refrão foi uma consequência da Família Titã.

Joe Bennett: Sim,  Exato. Ela foi logo em sequencia à FT.

Gian Danton: Mas voltando à família, Tribuno é o personagem mais interessante. Ele é heroi e vilão.

Joe Bennett: Sim. Ele é o canal pra toda a tragédia..pois já tem um espírito trágico.

Gian Danton: Engraçado que isso aconteceu por causa da correria. Não tivemos tempo de conversar sobre isso. Lembro que você fez o rafe rapidinho. Eu escrevi o texto todo em menos de uma hora.

Joe Bennett: Foi. Eu fiz o rafe numa tarde e te mostrei na manhã seguinte.

Gian Danton: Tudo foi muito rápido. No mesmo dia você já estava fazendo a primeira página.

Joe Bennett:  Não pensamos em nada além de FAZER... o original era pequeno 25 x 28 mais ou menos, para economizar tempo.

Gian Danton: E no final eu achava que o Tribuno era o herói e você achava que ele era o vilão. Acredito que o diferencial do Tribuno é que ele tinha motivação. Algo que falta em muitas histórias atuais. Os personagens parecem bonecos sem vida...

Joe Bennett: Sim..eu tinha esta ideia dele..tanto que sempre o fazia soturno e nos cantos dos quadros.

Gian Danton: Então ele tá lá, matando um monte de gente, botando o terror, mas o leitor entende ele, e até simpatiza com ele.

Joe Bennett: Sim..pois no texto tu compravas o leitor.. e isso foi ótimo. Eu era o promotor e tu eras o advogado.

Gian Danton:  E no desenho você caprichava nos detalhes mórbidos...

Joe Bennett:  É. A cena do Paulo preso nos destroços e bebendo gasolina para não morrer deixou até tu perturbado. Rs RS RS RS RS.

Gian Danton: Aquela cena da Vésper agarrada com a filha, o olhar de pavor dela é perturbador...

Joe Bennett:  Sim..e complementou com tua descrição da morte da criança..algo que não foi mostrado..mas ali estava tua descrição digna de um agente da gestapo... rs rs
 
Gian Danton: Lembrei de uma coisa agora. Essa sequência era a primeira da história, depois vinha o resto em flash- back. Quando foi publicado pela primeira vez, inverteram isso e colocaram no final. Essas narrativas não lineares eram típicas da nossa parceria.

Joe Bennett:  Sim..a trama é contada em flashback...isso é, claro, uma influencia do Moore...

Gian Danton Outra inovação foi colocar eles morando num lixão.

Joe Bennett:  Sim... hoje é cool mostrar isso, tem até novela no lixão, mas na época, não. Se fossemos bobinhos naquela época faríamos eles garotos normais, digo, morando em casas normais. Mas não, fomos pelo caminho da crueza mesmo...

Gian Danton: Falando sobre os personagens, Centurião e Vésper ainda continuam crianças, mesmo depois dos poderes...

Joe Bennett:  Sim, pois eram infantis mentalmente. Aliás..eram crianças de 12 a 14 anos na verdade. O Tribuno que por ser letrado, era bem mais maduro, mas não tanto ao ponto de aceitar que Melissa não o amava... se bem que pra isso não precisa idade ou intelectualidade... rsrsrs

Gian Danton: Sim, o Tribuno era um velho em corpo de criança.

Joe Bennett: Sim e literalmente... já que seu corpo estava morrendo

Gian Danton: Centurião e vésper são como crianças que ganharam um brinquedo caro e querem curtir esse brinquedo.

Joe Bennett: Isso

Gian Danton: Tem esse aspecto também. O Tribuno acha que eles devem usar os poderes para melhorar o mundo.

Joe Bennett: Sim, e na minha opinião o César queria ou teria usado este poderes de forma mais correta com o que lhe propuseram... na verdade o poder era DELE e ele o distribuiu e por isso a coisa desandou. Ele fez tudo por amor à Melissa.. quando deveria fazer por amor a humanidade

Gian Danton: O tribuno é tridimensional.

Joe Bennett: Sim. Bastante.

Gian Danton: É um personagem complexo: humanista, mas egoísta. Interessante também que o amor dele acaba se transformando em ódio.

Joe Bennett: Na verdade... o altruísmo dele em distribuir poder foi somente um fisiologismo para receber o amor da Melissa depois.

Gian Danton: Embora ele esperasse que ela usasse bem esse poder...

Joe Bennett: O odio anda em compasso com o amor..tanto que ao final de tudo ele chora por tudo que fez. Ali ele se redime.

Gian Danton: Só um deus pode matar um deus.

Joe Bennett: Na minha opinião ele nao morre no sol.. nada pode matar o que ele possui...

Gian Danton: Deixamos o final em aberto.

Joe Bennett: Cada um tem a sua ideia de como termina. Sempre fazíamos isso em nossas HQs. Dávamos margem para discussões depois. Nunca fechávamos tudo e
isso era algo bom.

Gian Danton: Aliás, muitos leitores achavam que o Tribuno era herói, outros que ele era vilão. Não tinha uma interpretação só.

Gian Danton Estava olhando a história. Acho que é a HQ em que fica mais clara sua influência do Garcia Lopez.
Joe Bennett: Sim..Garcia López. Ali eu me soltei neste sentido. Era uma HQ de super-herói. Portanto, nada mais adequado que emular meu mestre, tanto que esta HQ me levou a trabalhar nos EUA... mas isso é outra historia...

Gian Danton: Fala um pouco sobre essa influência.

Joe Bennett:  Eu conheci o o mestre Garcia aos meus 8 anos numa história do Batman. Foi amor à primeira vista. O cara é um mestre! Nunca havia visto herois sendo desenhados daquele jeito. Durante minha pré-adolescência eu treinei muito o estilo dele.

Gian Danton:  Engraçado que eu sempre fui fã do traço do Garcia lopez e você sempre foi fã do Alan Moore.... A Família Titã juntou um roteirista influenciado pelo Alan Moore com um desenhista influenciado pelo Garcia-Lopez...

Joe Bennett:  Pois é, ali juntamos as duas coisas.

Gian Danton: Você lembra como foram as reações dos leitores?

Joe Bennett: olha.. a melhor delas foi do Jadson, que na época era leitor e aspirante a quadrinhista. O Jadson comprou para descascar uma... aí começou a ler e não teve coragem de proseguir com seu intuito primário... rs rs rsrs... Virou fã da HQ... Aliás, muita gente comprava para descascar e depois virava fã da dupla.

Gian Danton: Eu sempre viajo em congressos e eventos e sempre vinha alguém com a Família Titã encadernada para autografar... O engraçado é que isso foi lançado em revista lacrada, de fundo de banca, papel jornal...

Joe Bennett: Pois é. Tinha gente que recortava só a família titã e mandava encadernar.

Gian Danton: Mesmo sendo erótico, a gente caprichava, não era o sexo pelo sexo...

Joe Bennett: Não acho que alguém tenha sentido tesão pela INCUBO... rs rs rs rs...

Gian Danton: Lembro de uma carta do Franco de Rosa nos pedindo para não matar os protagonistas.

Joe Bennett:  Há Há Há! Pois é, os leitores compravam por causa do erotismo e a gente matava os protagonistas. Era quase uma necrofilia da parte dos leitores... Muitos se sentiam mal...

Gian Danton Se sentiam mal, mas continuavam comprando.

Joe Bennett: É igual a um acidente com massa encefálica espalhada no asfalto... todo mundo acha horrível mas passa devagarzinho ao lado para ver...

Gian Danton: Aí iam na banca e procuravam as revistas que tivessem a margem negra... Lembro que vc já usava antes mesmo da nossa parceria. Você já tinha ideia que isso era uma sacada de marketing?

Joe Bennett: Sim, eu tinha sim, fazia de proposito, era marca Bene Nascimento na revista.

Gian Danton: E todo mundo sabia...

Joe Bennett sim. E compravam por isso também... eu só queria saber quantas vezes a FT foi republicada...

Gian Danton Eu contei quatro publicações. Quem curtia comprava a revista mesmo lacrada por causa da margem negra.

Gian Danton: Sobre continuações: Eu acho que poderia funcionar como prequel, tem muita brecha ali, muita coisa que contamos só por alto...

Joe Bennett:  Sim, não cabem continuações, mas prequels e enxertos sim... eles tiveram 10 anos de atividade... ou 15, não me lembro agora... portanto muita coisa aconteceu. Sem contar os 10 anos de exílo do César, poderoso e solitário e cada vez mais amargurado com o mundo.

Gian Danton: sim, há brechas aí para muitas histórias. Só isso já dava uma série.

Joe Bennett: Na época talvez não tivéssemos vivencia para fazer essas historias... mas hoje a coisa seria diferente. Fica aqui uma ideia...

Gian Danton: Não tínhamos vivencia nem mercado.

Joe Bennett: Hoje continuamos em mercado... rs rs rsrs

Gian Danton: Mas hoje existem os álbuns para venda em livrarias. O mercado da época era fazer histórias eróticas para serem publicadas em revistinhas de fundo de banca... Eu sempre lamentei a família titã nunca ter sido publicada em um formato melhor, com papel de qualidade...

Joe Bennett: Sim... finalmente, após quase 25 anos, isso vai acontecer.

Gian Danton: Na verdade, este álbum da FT é um antigo sonhos dos fãs.

Joe Bennett:  E nosso também...

Gian Danton: Muita gente me cobrava isso.

Joe Bennett: Sim..a mim também. Eu também me cobrava e hoje me cobro mais historias deles.

Gian Danton: Na época a chamada de capa era "a insólita família titã".

Joe Bennett: sim

Gian Danton: Não tinha nome dos autores na capa, ou maior destaque. Era o mesmo destaque das outras histórias.

Joe Bennett: Na verdade..nem nós nem o Franco sabíamos o que estava em nossas mãos. Poderíamos ter criado um universo inteiro com herois brasileiros e criveis a partir dali..

Gian Danton: o sucesso foi aos poucos. O pessoal foi descobrindo a história. Outra coisa que ajudou foi a internet. Um amigo americano me disse que alguém traduziu para o inglês e colocou na rede o scans. Infelizmente esse site deve ter sido derrubado antes de eu achar esse scan.

Joe Bennett: Poxa..que pena... eu queria ter visto isso.

Gian Danton: Eu também. Mas isso mostra que até nos EUA tivemos fãs da Família Titã...

Joe Bennett: Pois é. Aliás, foi graças à Família Titã que consegui trabalhar para os EUA. O Hélcio de Carvalho leu essa HQ e me convidou para fazer testes paras as editoras americanas. O resto é história...

domingo, 26 de maio de 2019

Teia do Aranha e o novelão aracnídeo

A revista Teia do Aranha publicava as histórias clássicas do aracnídeo em sequência, iniciando pela fase inicial de John Romita no título. 
O interessante de ler uma revista assim é acompanhar a evolução da trama. 
O título do Aranha, escrito por Stan Lee, era um grande novelão, mas as histórias eram auto-contidas. Raramente uma saga se estendia além de uma edição. O conflito normalmente era resolvido dentro daquela edição - terminando sempre com Peter Parker refletindo depressivamente sobre sua vida. 
O desafio aí deveria ser criar um vilão para cada edição - ou resgatar um vilão. 
Uma das curiosidades é uma edição usada apenas para apresentar o novo uniforme da Viúva Negra (e uma briga dela com o amigão da vizinhança que se revela totalmente despropositada). 
Mas no geral, a trama super-heroiesca misturada aos problemas pessoais e amorosos de Peter Parker seguravam o leitor. 
Não admira que o título se tornasse o mais vendido da Marvel na década de 1970: era uma revista à frente de seu tempo. (foto da minha coleção)

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Roteiro de quadrinhos: o tema da história


Alan Moore sugere que a melhor maneira de começar uma história é pela idéia, ou tema. O tema é aquilo sobre o que a história fala. Dou um exemplo literário: A Causa Secreta, de Machado de Assis, tem como tema a crueldade inata de algumas pessoas que se deliciam com a desgraça ou o sofrimento dos outros.
                V de Vingaça é uma história sobre o anarquismo em confronto com o totalitarismo.
                A Queda de Matt Murdock, de Miller e Mazzuchelli, é uma história sobre loucura  e decadência e sobre a incrível capacidade humana de vencer todas as adversidades.
                O tema não é o mesmo que a trama da história. Bom lembrar que a maior parte das HQs de super-herói não possui um tema. No máximo, podem ser história sobre a luta entre o bem e o mal.  E, no entanto, os super-heróis apresentam grandes possibilidades de desenvolvimento de temas.
                O roteirista Kurt Buziek e o desenhista Alex Ross aproveitaram a saga dos X-Men para contar uma história sobre o preconceito em Marvels            
                Talvez seja mesmo mais fácil imaginar um assunto que seria importante desenvolver antes de começar o roteiro. O resultado mais freqüente desse expediente é dar mais consistência à sua trama.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

A narrativa

Skreemer apresenta flash backs de vários personagens

Falaremos agora de um dos temas mais fáceis de serem percebidos e mais difíceis de serem usados numa história em quadrinhos.
                Falo da narrativa. O que é a narrativa? É a maneira como a história se desenrola. Com isso não quero me referir aos diálogos e ao texto, assuntos de que trataremos mais tarde e que pertencem ao mundo da FORMA.
                O tipo mais evidente de narrativa é a linear. Ou seja, é aquela história com início, meio e fim muito bem delineados.
                Por exemplo: um bando de assaltantes resolve roubar um banco. Eles chegam de carro, rendem o gerente, pegam o dinheiro e fogem. É quando aparece o Super-homem e prende todos os malfeitores. Termina a história com os meninos maus atrás das grades e um texto do tipo: "Viram, meninos? O crime não compensa".
                Esse é o tipo de narrativa mais comum de se encontrar nos quadrinhos clássicos (claro que não me refiro a algumas pérolas do roteiro, tais como Príncipe Valente, Spirit ou Capitão César). É o que chamamos de roteiro linear. Há um início, um meio e um fim bem delineados. E também não há complicações no miolo da história. As coisas se resolvem facilmente.
                Imaginemos, no entanto, que o roteirista queira tornar esse roteiro um pouco mais complexo. Ele pode, por exemplo, focar o Super-homem. O homem de aço está numa reunião no Planeta Diário e percebe que o banco está sendo assaltado. Como sair da reunião sem ser notado? Isso pode criar algumas situações interessantes, que vão tirar a atenção do leitor do assunto principal (no caso, o assalto ao banco).
                Isso é bom? Isso é ótimo! O roteirista deve ser, antes de tudo, um sádico. O leitor está louco para saber se o assalto vai se concretizar e você fica enrolando, mostrando Clark  Kent tentando se transformar no homem de aço. Chama-se a isso suspense. Toda boa história tem algum tipo de suspense, mesmo aquelas que fogem do esquema comercial.
                Mas voltemos à nossa história. Imaginemos que os bandidos estão em dois carros. O pessoal de um carro vê o Super-homem interceptando o outro veículo. Eles estão desesperados e tentam fugir. Mas... o destino e o roteirista são cruéis. O carro não pega. O motorista tenta, mas não consegue fazer o motor funcionar.
                Isso vai introduzir um pouco mais de suspense na história e, como já disse, todo suspense é bem-vindo. Podemos, inclusive, melhorar as coisas. Um dos bandidos sai correndo desesperadamente. Ele está  fugindo agora. Está entrando em becos escuros, está pisando em latas de lixo e pulando cercas. Tudo o que ele queria agora era estar em algum lugar seguro...
                O que acharam? Nossa história melhorou um pouco, hein? Mas, apesar de todo o suspense, ainda é uma história linear. Os acontecimentos se sucedem em perfeita ordem cronológica.
                Voltemos ao nosso amigo. Ele corre, fugindo do Super-homem e, enquanto pisa o lixo, pula as cercas e entra nos becos escuros, vai se lembrando do que aconteceu antes. A história é toda contada do ponto de vista das lembranças do personagem. Chama-se a isso flash back. Flash back é tudo aquilo que é contado, mas que aconteceu antes do tempo real da história. É o principal recurso para tornar a história não linear.
Em Piada Mortal os flash backs seguem uma ordem cronológica

                Existem vários tipos de flash backs. No simples, as lembranças do personagem seguem uma seqüência cronológica. Assim, nosso amigo vai se lembrar de quando seus comparsas estavam planejando o roubo para depois se lembrar do roubo em si. Um exemplo de flash back simples é Piada Mortal, de Alan Moore.
                Mas as memórias não precisam, necessariamente, seguir uma ordem. Pelo contrário, elas podem vir embaralhadas, como cartas de um baralho. 
                Certa vez, eu e Joe Bennett (Bené Nascimento) fizemos uma história em que usávamos esse recurso. Ela começava com o Puritano, o personagem principal, sobre uma clarabóia de vidro. Lá embaixo uma garota estava sendo sacrificada num rito satânico. Ele pula e quebra a clarabóia. O tempo real da história se passa em alguns segundo: é o tempo de chegar ao chão. Toda a trama é contada pelas lembranças, tanto de Puritano quanto da moça.
                Poderíamos, claro, ter mostrado primeiro os flash backs da moça e depois os do Puritano. Mas não. Preferimos embaralhar tudo. As lembranças eram mostradas intercalada e numa ordem não cronológica... Outro exemplo de narrativa não-linear é a história Belzebu, escrita por mim e desenhada por Joe Bennett. A história começa do final, e os fatos do passado são narrados como uma lembrança da personagem. No caso dessa história há também uma interessante estrutura de elipse, pois a história começa e termina com um cachorro morto.
Watchmen e o flash back não cronológico

                Um ótimo exemplo de flash back embaralhado é o capítulo quatro (dois no Brasil) de Watchmen, quando Dr. Manhathan está em marte e começa a lembrar do seu passado.
                Outro ótimo exemplo é a mini-série Skreemer, de Peter Millingan. Lá existem tantos flash backs não cronológicos e de tantos personagens que o colorista optou por usar tons pastéis nas cenas de passado. Isso para não confundir o leitor. O resultado é que cada  releitura de Skreemer nos revela novos detalhes da trama. E, falando em detalhes, aí vai um: o tempo real da trama é de 15 minutos, o tempo que Skreemer está esperando para soltar seus balões infectados.
                Um recurso interessante de narrativa que Alan Moore diz ter emprestado de Gabriel Garcia Marques é contar a história através das narrativas de vários personagens. Só que nenhum deles tem a história completa, de modo que o leitor é obrigado a montar a trama  mentalmente, como se montasse um quebra-cabeça.
                O filme Cidadão Kane, de Orson Wells, mostra uma técnica narrativa semelhante. A história é construída através do depoimento de várias pessoas que conheceram Kane e muitas vezes os mesmos fatos são mostrados de maneiras bem diferentes.
                Há um livro da coleção Perry Rhodan que leva ao extremo essa possiblidade narrativa. Dois agentes que se odeiam são mandados para realizar, juntos, uma missão em um planeta distante. A aventura é contada através do relatório dos dois. Acontece que os dois documentos são absolutamente discordantes. Um fato é mostrado como heróico em um dos relatórios e patético em outro. O resultado é muito divertido de se ler.

domingo, 19 de maio de 2019

Grafipar, a editora que saiu do eixo


No final da década de 1970, Curitiba se tornou a sede da principal editora de quadrinhos nacionais. A produção era tão grande que se formou até mesmo uma vila de quadrinistas. No livro Grafipar, a editora que saiu do eixo, eu conto em detalhes essa história. O livro inclui também algumas HQs publicadas na época e análise das mesmas.
Pedidos: profivancarlo@gmail.com.

A morte do Super-homem e o deus ex-machina

A morte do Super-homem é um ótimo exemplo de deus ex-machina

A morte do Super-homem foi um sucesso estrondoso. Vendeu milhões de exemplares na década de 1990. No entanto, a grande maioria das pessoas que comprou na época hoje, ao reler, considera essa uma história ruim do personagem.
A razão disso é um deus ex machina.
Deus ex machina é qualquer solução que não faça parte da lógica da história. É um recurso que destrói o pacto de verossimilhança, pois o leitor percebe que há algo errado ali, algo parece não fazer sentido.
A maioria das pessoas costuma imaginar o deus ex machina como uma solução para salvar o herói. O protagonista está prestes a ser enforcado quando aparece do nada alguém para salvá-lo. Mas a morte do Super-home mostra que o deus ex machina pode ser também o oposto: alguém que aparece do apenas para matar o personagem.
A história dessa saga é atribulada.
Nos anos 1990 o departamento de marketing das editoras exigia eventos sensacionalistas que ajudassem a vender os gibis. A equipe do Super-homem decidiu casar o personagem. Mas surgiu uma dificuldade: na época o homem de aço tinha um seriado live action de sucesso e iria se casar com Lois Lane, mas só no ano seguinte. Se ele casasse nos quadrinhos, teria que ser em sincronia com o seriado.
Foi quando tiveram a ideia de matar o Super-homem. Mas o prazo era curto, então a solução foi simplesmente introduzir do nada um personagem super-poderoso que não fala uma única palavra durante toda a história, derrota todos os super-heróis (sem matar nenhum) e finalmente mata o Homem de aço. Apocalipse parecia ter sido criado com um único objetivo: providenciar a necessidade que os roteiristas tinham de criar um evento bombástico criado não só para vender gibis, mas também bonequinhos.
O personagem Apocalypse surge do nada, apenas para matar o homem de aço.

Um personagem tirado da cartola que derrota todo mundo, mas não mata ninguém além do Super-homem é um ótimo exemplo de um deus ex machina. Uma falha do roteiro que se tornou ainda mais evidente quando o personagem simplesmente voltou da morte.
Na contramão da correria que foi a morte do Super-homem temos uma das melhores sagas dos quadrinhos de super-heróis, a saga da Fênix Negra.
No número 125 da revista X-men, Claremont mostra Moira realizado testes com a Fênix e o diálogo posterior mostra ambas preocupadas que o poder imenso da personagem possa sair do controle. No número seguinte, uma “alucinação” mostra Jean Grey caçando um homem vestido de cervo, o que já demonstra o lado negro da personagem vindo à tona. A personagem pensa: “Um homem?! Eu queria matá-lo! Estava prestes a... o que está acontecendo comigo?”.
A saga da Fênix é um exemplo de solução dentro da lógica da história.

Assim como esse, vários outros indícios de que há algo errado com a personagem vão sendo mostrados até que ela se alia ao Clube do inferno na edição 132. Quando no número 134 ela se transforma na Fênix Negra, uma das maiores vilãs que o universo Marvel já conheceu, o leitor lê e pensa: “Sim, isso faz sentido. Ela era uma heroína, mas eu acomapanhei sua transformação em vilã”.
Claremont e Byrne levaram nove números construindo a lógica da história, de modo que o surgimento da Fênix Negra parece consequência óbvia do que veio antes.
Não é à toa que a Saga da Fênix é até hoje considerada uma das melhores histórias de super-herois de todos os tempos, e parece melhor a cada leitura. Ao contrário da morte do Super-homem.

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