terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O planeta dos macacos e os furos de roteiro

Na década de 1970 os filmes da série Planeta dos macacos faziam um sucesso tão grande que alguém teve a ideia de fazer uma animação com o tema. Lançado em 1975, era resultado de uma associação dos estúdios DePatie-Freleng Enterprises com a 20th Century Fox Television e teve 13 episódios. 
O desenho é uma verdadeira decepção, inclusive para aqueles que são fãs dos filmes. A animação é fraca, com muitas repetições de cena, embora isso necessariamente não seja um defeito grave. O desenho de Jornada nas Estrelas tem animação ruim, mas roteiro bom e o resultado final acaba sendo ótimo. Por outro lado, o filme Selvagem, da Disney, tem ótima animação, mas roteiro chato. Resultado: foi um fiasco de bilheteria.
O grande problema na animação dos macacos está no roteiro, com tantos furos que parece uma peneira.
Esse roteiro é tão ruim que estou tendo infarto! 

Senão vejamos. O DVD que tenho mostra a história aparentemente no segundo capítulo. A cronologia dos filmes é totalmente esquecida e é como se pela primeira vez uma nave fosse parar no planeta dos macacos. Um dos astronautas está sendo levado pelos gorilas, outro foi salvo por uma mulher selvagem. Uma vez na cidade, o astronauta foge. Todos, absolutamente todos os soldados macacos vão atrás dele, mas mesmo assim ele foge com facilidade impressionante e ainda encontra tempo para libertar todos os humanos presos pelos gorilas, pois encontra a prisão sem guarda. Aparentemente os macacos não aprenderam nada de segurança depois de tanto tempo...
Mas continuemos. Em uma seqüência posterior, os dois astronautas estão vistoriando uma região de montanhas quando vêm um grupo de militares simiescos se aproximando. A cena mostra o humano loiro encostado numa pedra, olhando displicentemente para a frente: “Parece que os macacos estão nos procurado”. E outro: “Se nos virem aqui, estamos ferrado!”. Qualquer um sairia correndo para se esconder, mas eles ficam lá parados, olhando o tempo. “É, parece que eles nos viram”. “Poxa vida, isso é horrível”, dizem eles, sem sair do lugar. 
Proatividade parece ser uma palavra desconhecida para esses dois homens. Fiquei imaginando a continuação do diálogo: “Eles estão a um quilômetro!” “Nossa, logo eles não vão nos alcançar se não corrermos”, “Agora eles já estão a cem metros!”, “Vamos fazer um lanche?”.
Vamos continuar procurando a lógica dessa história! 

Mas os nossos heróis são salvos por uma montanha que se eleva na frente deles, escondendo-os, um artifício que os bons roteiristas chamam de Deus ex machina. Essa expressão significa algo exterior à história, que surge para salvar a situação. É chamada assim porque os dramaturgos gregos ruins constumavam baixar um deus no final da peça para costurar as pontas soltas ou para explicar situações não muito lógicas. Um Deus ex machina é quando o roteirista arranja uma saída totalmente desconhecida do leitor para salvar os heróis ou para resolver uma situação. É erro gravíssimo.  
Depois dessa tremenda forçada de barra, os heróis ainda encontram uma porta secreta, por onde chegam ao mundo dos humanos subterrâneos. Nisso eles descobrem que estão na terra. O desenho foi feito no final da década de 1970, uma época em que todo mundo já sabia disso, mas mesmo assim o desenho faz um suspense desnecessário sobre isso.
Os expectadores nunca vão desconfiar que estamos na Terra. Vamos tomar um café? 

No mundo dos subterrâneos eles encontram a terceira astronauta e fogem com ela num carrinho que corre por um trilho. Os subterrâneos têm duas formas de defesa: uma são ilusões, outra são raios emitidos pelos olhos. Então eles primeiro fazem aparecer uma parede de mentira e os heróis acham que vão bater, mas passam direto por ela. Depois acham que vão cair num buraco, mas, mais uma vez descobrem que é uma ilusão. Então eles se deparam com uma parede de fogo. Qualquer pessoa que tivesse passado pelas experiências anteriores aprenderia o bastante para saber que a parede é também uma ilusão, mas os nossos astronautas são burros como uma porta e morrem de medo do fogo. Quando passam por ele e descobrem que estão vivos, comentam entre si: “Quem diria, é uma ilusão!”. Será que eles aceitam pessoa com QI 0,1 na NASA?
O teste de QI mostra que os astronautas da NASA são mais burros que nós! 

Enquanto isso, os subterrâneos atiram neles com seus raios... e não acertam nada, nem os trilhos, nem os humanos, nem o carrinho. São quase cinco minutos de tentativa e nada. Uma impossibilidade matemática! Isso nos faz pensar que os subterrâneos aprenderam a atirar com um cego paralítico e epiléptico. Não acertar em absolutamente nada durante cinco minutos de tiroteio é mais difícil que ganhar na loteria, mas eles conseguem e os astronautas saem de lá sem um único arranhão.
O pior de tudo é que o episódio foi escrito por dois roteiristas. Será que nenhum deles percebeu os buracos no roteiro?

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A trilha sonora perfeita para uma história de horror amazônico

Texto narrativo – texto redundante



Algo fundamental, uma das primeiras lições para um futuro roteirista de quadrinhos, é que o texto nunca deve ser redundante. Em outras palavras, nunca se deve dizer com as legendas ou com os diálogos aquilo que o leitor está vendo.
Mas algumas pessoas confundem texto redundante com texto narrativo. Embora possam parecer semelhantes, não são. O texto narrativo, embora não explore toda a potencialidade dos quadrinhos, não chega a ser um erro. Já o texto redundante se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo é erro feio.
Imagine uma cena: um casal andando pelo deserto em pleno dia, o sol acima deles e nada por perto além da areia escaldante.
Um texto narrativo possível para a cena seria: “O casal andou por horas a fio sob o céu escaldante sem encontrar um único indício de vida ou civilização. Se não encontrassem logo água, iriam morrer no deserto”. Observe que há várias informações incluídas no texto que não aparecem na imagem (o casal está andando por horas, não encontraram sinal de vida em toda a caminhada, logo vão morrer de sede).
Um texto redundante sobre a mesma cena seria: “O casal anda no deserto sob o sol escaldante”. Neste caso, o texto se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo, sem acrescentar nada à informação visual.
Percebam como o texto redundante se limita a descrever a imagem que está sendo vista pelo leitor. Ou seja, é totalmente desnecessário.
Um exemplo de texto redundante pode ser encontrado na página da série Os Eternos, de Jack Kirby, publicada em Superaventuras Marvel 25.
Observe os dois primeiros quadrinhos. Eles mostram a nave dos desviantes entrando por uma cabeça de pedra e singrando em direção a uma abertura luminosa. O que o texto diz? O que o leitor está vendo: “Logo uma enorme cabeça de pedra surge à sua frente. Penetrando pela boca do dragão, a nave avança rumo a uma abertura luminosa”.

Um outro exemplo de texto redundante pode ser encontrado na versão quadrinística da história A torre do elefante, com textos de Roy Thomas e desenhos de John Buscema. Conan e outro ladrão estão no pátio da torre quando encontra com cinco leões. O diálogo diz: “Leões! Cinco deles!”.
Curiosamente, na mesma página há um exemplo de ótimo uso do texto quadrinístico, inclusive como elemento de suspense. O ladrão nemédio empurrou Conan para trás, fazendo com que ele parasse. O texto diz: “Seu olhar está fixo em arbustos poucas jardas à frente... arbustos que continuam se movendo, embora o vento tenha morrido”. O texto narra a aproximação de algo que o leitor não é capaz de identificar visualmente (só depois, no quadro de impacto ele descobrirá que são leões).

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Superman e a arma de Tcheckov



Anton Tcheckov foi um dos principais escritores russos e um dos contistas mais importantes de todos os tempos. Ele formulou um princípio narrativo básico segundo o qual, “Se você diz no primeiro capítulo que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro capítulos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá”.
Esse princípio, que passou a ser chamado de A arma de Tcheckov é tanto uma lembrança da importância da simplicidade narrativa (deve-se evitar colocar na trama algo que não terá importância) quanto uma boa dica sobre o que, nos quadrinhos, chamamos de gancho. Ela também poderia ser formulada da seguinte maneira: “Se no segundo capítulo alguém vai disparar um rifle, no primeiro capítulo essa arma deve aparecer pendurada na parede”.
Algo que é simplesmente jogado na trama, sem ter uma razão narrativa pode parecer para o leitor como uma ponta solta. Por outro lado, se algo relevante para a trama não é mostrado antes, pode parecer um deus ex machina. Exemplo: uma mulher está sozinha em casa. Entra um estuprador. Ela pega a arma para se defender. Se a arma não foi mostrada antes, vai parecer que aquele objeto surgiu do nada, um deus ex machina.
Um ótimo exemplo de bom uso da arma de Tcheckov é o segundo capítulo da série Grande Astros Superman, com roteiro de Grant Morrison e arte de Frank Quitely.
Na história, Superman, sabendo que vai morrer, leva Lois Lane para a Fortaleza da Solidão. Mas há algo misterioso acontecendo e a repórter pode estar em perigo.
Logo no início, o Homem de aço mostra alguns tesouros de sua coleção, incluindo uma arma de raio laser de kryptonita. Na sequência seguinte, Lois vê uma sala aberta e tenta entrar, mas é impedida pelo Superman, que lhe diz: “Vá aonde quiser nessa fortaleza, mas considere essa sala proibida”.
Sozinha, Lois começa a se indagar se os novos poderes não mexeram com a personalidade do herói: “E se ele ele estiver com algum problema mental e me trouxe para fazer parte de algum experimento macabro que prepara naquela sala?”. Temendo isso, ela decide que precisa se preparar. O que ela faz? Vai na sala de troféus e pega a arma que foi mostrada logo no início da história!
O exemplo pode dar a entender que a arma de Tcheckov se aplica apenas a pistolas, rifles e espingardas, sejam elas convencionais ou tecnológicas.
Mas não.
Na própria história analisada temos um outro exemplo de utilização desse princípio: a sala proibida que Lois tenta entrar. Há ali diagramas femininos que a fazem pensar que se trata de uma experiência científica que teria ela como objeto.
No final, entretanto, Superman explica o que aconteceu: “Parece que o robô 7 teve um problema de processamento de dados. Ele deixou a porta do laboratório aberta enquanto eu sintetizava uns compostos alienígenas. Gases que podem induzir distorções visuais e reações paranoicas extremas”.
Se voltarmos à página em que isso acontece, de fato há uma espécie de nuvem de gás azul saindo da sala e envolvendo Lois Lane. Esses gases saem de um frasco de vidro à frente do robô.
E a explicação para os diagramas femininos era simples: Superman estava produzindo uma roupa extremamente tecnológica para Lois, adaptada inclusive ao seu código genético para que ela tivesse um dia como super-heroina.
Tudo estava ali, desde o princípio, bem claro, na frente do leitor. Como o rifle de Tcheckov.  

domingo, 29 de setembro de 2019

Exemplo de roteiro: Big Numbers, de Alan Moore

Big Numbers foi uma série inacabada com roteiro de Alan Moore e desenhos de Bill Sienkiewicz. Foram produzidos três números, mas só dois publicados. O terceiro foi disponibilizado na internet por um fã, que conseguiu uma cópia xerox do material. 
O roteiro a seguir é parte da primeira página desse terceiro número. É um ótimo exemplo do formato chamado pelo próprio Moore de "à prova de desenhistas", em que o roteirista descreve tudo nos mínimos detalhes. Em tempo: gostaria de agradecer à tradução do amigo Alan Noronha, roteirista de quadrinhos e tradutor juramentado (o Whatsapp dele para trabalhos de tradução é 51 981415046 e você pode também entrar em contato através da página dele).

Confira o roteiro e veja como ficou o resultado final. 

BIG NUMBERS
Três (quarenta páginas)
PÁGINA 1
QUADRO 1
“APENAS NO PAPEL A HUMANIDADE CONSEGUIU ATINGIR GLÓRIA, BELEZA, VERDADE, CONHECIMENTO, VIRTUDE E AMOR DURADOURO.” - GEORGE BERNARD SHAW.

Olá, Bill. O tema visual recorrente que permeia esta edição é o do papel se ferrando. Considerando isso, não tenho muita certeza sobre a relevância da citação do Shaw acima...foi apenas o único verbete com a palavra papel no meu dicionário de citações. Talvez seu significado fique menos opaco ao progredirmos com a narrativa. Assim esperamos.

Esta primeira página tem 12 quadros, nos quais nós basicamente estamos olhando a irmã de Christine, Janice, que está sentada em sua cadeira junto à parede da ala lateral do hospital durante sua vigília da ainda não vista forma de seu namorado em coma Keith. Quero que você imagine que estamos olhando a Janice de frente, ela sentada contra a parede nos encarando, e que ela está lendo um formulário de pesquisa ilustrado e fartamente impresso. O formulário consiste em uma única folha, impressa em ambos os lados, na qual imagens simples e brilhantes de vida de consumidor rodeiam uma lista de perguntas que são brilhantemente numeradas. Conforme a Janice vai lendo, a parte de cima do formulário se virou para trás, de modo que fica visível de cabeça para baixo quando olhamos para ela. Agora, para este primeiro quadro, quero que você imagine que nós demos um zoom bem nessa parte virada do formulário de pesquisa. Mais precisamente, demos um zoom na coluna dos grandes números anelados que marcam as perguntas, embora estejamos tão perto deles que não podemos ver as perguntas. Tudo o que vemos são dois ou três grandes números de cabeça pra baixo, provavelmente números entre um e quatro, já que estão relacionados às perguntas bem no início da enquete. Esses dígitos invertidos preenchem todo o primeiro quadro, levando-nos à questão do campo de números que preenche a página frontal interior. O balão de fala da Janice sai do quadro acima.

Janice (em off, acima): ...dei dois formulários extra pra mamãe, mas a Chris estava choramingando sobre o romance dela, então ela não queria FAZER aqui.

QUADRO 2
Agora nos afastamos um pouco do close intenso nos números virados. Nesta tomada, podemos ver as perguntas (também de cabeça para baixo) que estão anexadas aos números anelados, sendo elas coisas simples como nome, endereço, você é o dono da propriedade acima, etc, que não precisam ser legíveis aqui a menos que você queira que elas sejam. Também podemos ver agora, nos afastando, que estávamos olhando a parte de cima virada de um formulário de pesquisa, e podemos talvez vislumbrar um pouco da mão da Janice...o dedão ou algo assim...entrando no quadro de fora para um lado enquanto ela segura o pedaço de papel. Os balões dela ainda entram no quadro na parte de cima da imagem.

Janice (em off, acima): Então, este formulário extra, eu pensei “Oh, o Keith gostaria disso. Eu vou...”  
Janice (em off, acima): Keith? Está me ouvindo?

QUADRO 3
Afaste um pouco mais e podemos ver agora toda a folha com o verso virado e um pouco de Janice sentada logo após, segurando-a frente a si enquanto lê para Keith, que não aparece no quadro. Ela está provavelmente sentada com uma capa de chuva, e se podemos ver algo de seu rosto entrando no quadro pela parte de cima, deve ser a parte inferior do rosto, com os olhos ainda não visíveis.
Janice (de cima): Bom.
Janice (de cima): Bem, de qualquer modo, tem a ver com um shopping center novo e eu já preenchi as quatro primeiras...

QUADRO 4
Ok, neste quadro nos afastamos só um pouco mais e agora temos uma confortável tomada de meia figura de cabeça e ombros da Janice sentada de frente pra nós em sua cadeira de hospital, segurando o formulário de pesquisa em frente dela, seus olhos abaixados em direção a ele enquanto lê. Sua expressão, como de costume, é razoavelmente neutra. Também, baseados em seu ambiente imediato, não temos muita ideia de onde ela está, como nas ocasiões anteriores em que a vimos sentada com Keith no hospital.  Keith, como sempre, está fora do quadro, em algum lugar ao fundo. É quase como se olhássemos para Janice através dos olhos comatosos dele, embora só vamos perceber isso mais tarde nesta edição.
Janice: “Nome: Keith Peach
                Endereço: Hospital
                Você é dono da propriedade acima? Não.
                Emprego ou ocupação: encanador”

QUADRO 5
Ok, agora no resto desta página de doze quadros mantemos a mesma tomada da Janice, só sentada lá de frente pra nós em uma tomada de meia figura de cabeça e ombros. Apenas Janice se move nesta página, e apenas levemente. Aqui, ela ainda não está olhando para nós, mas ainda tem os olhos baixos fixos no formulário. Aqui, ela tem uma leve expressão de inquietação como se estivesse levemente perplexa com a elaboração da próxima pergunta.
Janice: Aí diz “Você está atualmente trabalhando no emprego acima?”
                       Quer dizer, “Você ainda trabalha como encanador?”

QUADRO 6
Mesma tomada. Aqui, porém Janice desvia o olhar do formulário e dirige um olhar frio e questionador diretamente para nós, nos olhando diretamente nos olhos. Oh, por falar nisso, eu deveria ter mencionado que a Janice está segurando uma caneta esferográfica na outra mão. Desculpe por isso. Aqui, a caneta está pausada sobre o formulário enquanto a Janice dirige seu olhar questionador ao Keith que está fora do quadro antes de continuar.
Sem diálogo.

 

Roteiro de quadrinhos: como registar

Toda semana alguém entra em contato perguntando como registrar roteiro de quadrinhos. Cansado de responder individualmente, resolvi fazer um post sobre o assunto.
O registro é feito na Biblioteca Nacional. Clique aqui para uma página da Biblioteca com perguntas e respostas sobre esse processo de registro.
O registro não assegura direito sobre a ideia, mas apenas a forma. Ou seja: o registro não garante que alguém não vá escrever algo semelhante, mas assegura contra plágios descarados, aquele indivíduo que pega seu texto e publica como sendo dele. O registro não é garantia contra textos requentados ou modificados.
O registro é pago e os originais devem ser enviados pelo correio, embora seja possível baixar a ficha de inscrição no site da Biblioteca Nacional.
O valor normal do registro é R$ 20,00. Mais o Sedex, deve ficar tudo numa média de 50 reais.
Aí também é preciso ponderar se vale a pena registrar. Tem gente que me procura perguntando como registrar um roteiro de duas páginas. Ora, as editoras que pagam melhor, pagam 15 reais a página de roteiro. Nesse caso, você vai gastar mais para registrar do que irá possivelmente receber pela obra. Isso se receber, claro. Eu já levei calotes Homéricos - uma editora portuguesa me encomedou cinco histórias de 12 páginas. No final, não pubicou nem pagou nada e ainda fizeram a proposta indecorosa de me ceder a horrível logo criada pelo artista deles para a minha personagem como forma de pagamento.
Também é importante lembrar que a maioria das editoras prefere não pagar os roteiristas, mas pegar projetos prontos e pagar direitos autorais após as vendas. Se vender bem, você pode ganhar alguma grana. Um amigo meu que publicou um álbum por uma editora grande só recebeu alguns exemplares como pagamento. A mesma coisa aconteceu com o meu álbum War, histórias de guerra. O pagamento foram alguns exemplares.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Roteiro de quadrinhos: suspensão de descrença

Em uma história em quadrinhos, tudo é possível. Tudo mesmo. O Super-homem pode voar, ter visão de raio-x, o Hulk pode sacudir o asfalto, como se fosse um tapete, o Homem-aranha pode escalar paredes... isso para ficarmos apenas nas histórias de super-heróis. Se formos ampliar para gêneros como a ficção-científica, teremos viagens espaciais em poucos segundos, alienígenas que falam inglês... os exemplos são muitos. 
A verdade é que o leitor pode acreditar em qualquer coisa que o roteirista escrever, mas para isso é necessário criar um pacto de verossimilhança, é necessário convencê-lo a acreditar e a entrar com sócio dessa história que contamos e que se passa todinha dentro da mente dele. 
Há muitas maneiras de estabelecer esse pacto e convencer o leitor sobre a verossimilhança da história, por mais impossível que ela possa parecer.
Os criadores do Super-homem adotaram uma visão rasa da ciência ao argumentar que, se uma formiga podia carregar várias vezes o seu peso, uma pessoa também poderia fazê-lo se viesse de outro planeta. A primeira página, da primeira história do personagem fala justamente disso. Os leitores engoliram a pílula e acreditaram que, sim, aquele homem com cuecas sobre as calças e usando uma capa vermelha podia ter super-força e dar saltos enormes. Daí para acreditarem que ele voava foi um passo. Daí para acreditarem que ele tinha visão de raio-x foi fácil. Depois que o leitor engole a pílula, ele entra na história e aceita todas as regras ditadas pelo roteirista, desde que este não seja incompetente a ponto de entrar em contradição. Se, de uma hora para outra, o Super-homem se tornasse incapaz de voar sem nenhuma explicação plausível, o encanto se quebraria e o leitor deixaria de acreditar.
Existem outras formas de criar esse pacto de verossimilhança. 
Uma delas é colocar na trama um personagem que não acredita na parte fantástica da história. Mas é um personagem louco, sem noção ou simplesmente chato. Ao antipatizar com ele ou ver que ele tem uma visão equivocada da realidade, o leitor, por tabela, acredita em tudo aquilo que ele está dizendo que é impossível. 
Em um episódio do seriado Além da Imaginação chamado O Marciano, policiais entram em uma lanchonete de beira de estrada procurando o ocupante de uma nave extraterrestre que desceu nas redondezas. Há ganchos que ajudam o receptor a acreditar que o fantástico é real, como o fato de todas as pessoas na lanchonete serem de um ônibus, e, segundo a contagem do motorista há uma pessoa a mais. Mas o que faz realmente as pessoas acreditarem é um chato meio maluco que o tempo todo ridiculariza a busca dos policiais. Ele é tão irritante que não há como não discordar dele. Portanto, logo acreditamos que uma das pessoas ali é, de fato, um marciano. A propósito, que assistir ao episódio (disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=b3Bk_HuMOEM) perceberá os vários ganchos que serão amarrados no final da história. Apesar de surpreendente, o final é perfeitamente perceptível para quem prestar atenção a detalhes como olhares dos personagens, etc.
Uma outra forma de criar essa ilusão de realidade é colocar um protagonista com o qual a pessoa se identifique e é que é descrente, mas que vai acreditando aos poucos. Como o leitor tende a se identificar com o protagonista, se ele começar a acreditar, o leitor também acreditará. 

No filme 1408, de Mikael Hafström, baseado em um conto de Stephen King, um escritor vive de visitar locais assombrados e escrever sobre suas experiências. Ele nunca viu um local realmente assombrado, assim ele não acredita quando o gerente do hotel lhe diz que coisas realmente terríveis acontecem no quarto 1408. Assim como ele, nós também não acreditamos. Mas quando pequenas coisas inexplicáveis começam a acontecer, o ceticismo dele passa a ser abalado. Quando ele entra em desespero, ao perceber que está de fato em um quarto assombrado, nós entramos em desespero com ele. Afinal, nesse ponto nós já compramos a história e acreditaremos em tudo que vemos.
Eu usei um recurso desse tipo na graphic Manticore. O detetive, protagonista da primeira parte, é um homem que diz não acreditar em papai Noel ou coelhinhos da páscoa. Portanto, ele não acredita que uma criatura extraterrestre está andando solta por aí. Com o tempo, ele começa a ter provas em contrário e passa realmente a acreditar. E o leitor junto com ele.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

PassaVida

Os PassaVida e o uso da personificação






Uma verdadeira preciosidade para quem gosta de música amapaense é o livro Então, foi assim?,de Ruy Godinho. Na obra o autor conta o processo de criação de algumas das
principais musicais tucujus, entre elas Os passa vida, de Osmar Júnior e
Rambolde Campos, em minha opinião a mais poética de todas, um belo exemplo de
como usar vários recursos poéticos, em especial a personificação, em uma música.
 
Para começar, ao contrário do que muitos imaginam, a música não é sobre Belém, embora tenha ficado famosa na versão da banda Sayonara.
Segundo o livro, a composição surgiu num momento de depressão do poeta Osmar Júnior, após o fim de um relacionamento. O amigo Rambolde Campos foi visitá-lo e, vendo-o daquele jeito, convidou-o para darem uma volta de carro. Iam andando à toa e Osmar Júnior apontando para as mangueiras e comentando o quanto elas eram bonitas.
Daí os versos “Quando o sol chegou, acendendo o dia, foi pra me socorrer da noite que eu vinha”.
Aliás, quando foi gravada em Belém por Alcyr Araújo este mudou a letra para
“Quando o sol chegou, iluminando dia”, um versão bem menos força poética e
simbólica.  
Uma outra mudança ocorreu no trecho: “É que nessa cidade, as mangueiras falam sempre em ti. No passo da chuva nos passa a vida, é sempre assim”, Na gravação paraense ficou É que nessa cidade, as mangueiras falam sempre em ti. Na chuva da tarde os passa
a vida, é sempre assim” para deixar a música mais com a cara de Belém. A
mudança, no entanto, fez com que a composição perdesse força, pois perdeu-se a
aliteração (Nos passos... passa vida) e simbologia.
Uma das partes mais lindas da letra, no entanto, foi preservada integralmente: “Mandei a saudade te buscar pra perto de mim”.
Para que não conhece, a personificação é uma figura de linguagem na qual se atribui características humanas a objetos, coisas. É o uso dessa figura que faz Os passa vida ser tão bonita. É o sol que acende o dia e tira o poeta da depressão da noite, são as
mangueiras da cidade que falam da amada, é a saudade que vai buscar a amada de
volta para o poeta.

Viu como a música ganhou força poética com o uso desse recurso. Nada impede que a personificação possa ser usada no texto de uma história em quadrinhos. 

A verossimilhança e a caracterização visual


Eu já expliquei aqui que história em quadrinhos de ficção não é documentário. Ou seja: uma HQ não precisa ser realista, ela apenas precisa convencer o leitor de sua realidade. Isso passa muito pela caracterização visual dos personagens. Por exemplo, os cientistas não costumam ser carecas, os malvados não costumam ser feios. Mas um bom desenhista recorre a essa generalização para que o leitor identifique, logo de cara, a função ou a personalidade dos personagens.




Basta olhar para Ming e Flash Gordon e perceber quem é o vilão e quem é o herói.
Marcos Rey, um dos grandes roteiristas brasileiros de cinema e TV lembra a figura de Sherlock Holmes, cuja caracterização, com cachimbo, lente de aumento e sobretudo xadrez, o identifica imediatamente.


Claro que hoje as HQs hoje não trabalham tanto com clichês, mas mesmo assim, desenhistas e roteiristas utilizam objetos, roupas e até expressões ou gestos para caracterizar os personagens, já que os quadrinhos são uma mídia visual.
Nos primeiros capítulos da webcomics Exploradores do Desconhecido tínhamos um personagem que aparecia em poucos quadrinhos. Ele era um político avesso à tecnologia, que é contrário à Operação Salto Quântico e que acaba sendo convencido pelo Capitão a apoiar o projeto. No meu roteiro, coloquei que ele era alguém antiquado, temeroso de avanços tecnológicos. Na hora de ilustrar a sequência, o desenhsita Jean Okada decidiu colocá-lo de óculos. Toda a caracterização psicológica do personagem ficou explícita sem que precisassemos usar uma palavra. Bastava bater o olho e o leitor percebia que aquele político era contrário às inovações (até porque seu óculos era do tipo antigo).

Quando divulgava a série no Orkut, ainda no ano de 2008, encontrei um suposto crítico de quadrinhos que implicou com o político de óculos e com o fato dos Exploradores não usarem toquinha. De fato, nas missões na NASA os astronautas usam uma toquinha e, por conta disso, esse suposto crítico achava que também os Exploradores deveriam usar toquinha.

- Mas em Jornada nas Estrelas eles não usam toquinha. - argumentei.
- Jornada nas estrelas é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar toquinha!
- Mas em Guerra nas Estrelas eles não usam toquinha. - retruquei.
- Jornada nas estrelas é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar toquinha!
- Mas no filme Contato, baseado na obra do cientista Carl Sagan, eles não usam toquinha. - expliquei.
- Contato é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar toquinha!
- Mas em Esquadrão Atari eles não usam toquinha. - lembrei.
- Esquadrão Atari é uma m*... ! - respondeu ele. Em história de ficção científica, todo mundo tem que usar toquinha! 

Como o palavrão é o argumento dos que estão errados, ele saiu batendo o pezinho e prometendo que ia mostrar como se fazia:
- Vou escrever um livro em que os astronautas usam touquinha e que os políticos não usam óculos. Vai ser um sucesso porque todo mundo quer ler histórias com astronautas de toquinha!


Pois é... dizem até que ele escreveu tal livro com o astronauta de toquinha... quanto ao sucesso... 
A grande lição é: história em quadrinho não é documentário. Embora os astronautas da NASA usem toquinhas durante as missões, a maioria das pessoas pensa neles sem a tal toquinha pela simples razão de que, normalmente, quando aparecem em público, estão sem toquinha.
Assim, para o leitor normal, um astronauta de toquinha é menos verossímil que um astronauta sem toquinha. E nos quadrinhos a verossilhança é mais importante do que o realismo.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Texto de ambientação

Texto de ambientação na graphic Manticore
Uma técnica interessante é o texto de ambientação. O objetivo é ambientar o leitor no clima da história, criando um efeito parecido com o da trilha sonora nos filmes. É uma utilização do texto aparentemente exclusiva dos quadrinhos. O cinema dificilmente usa o texto em off e a literatura, como não dispõem dos desenhos para contar a história, fica presa à função narrativa.
 Vamos encontrar um exemplo desse tipo de texto no álbum Os Companheiros do Crepúsculo, de Bourgeon:
Esta durou, diz-se, cem anos... Nada a distinguiu verdadeiramente daquelas que a perceberam, nem das que lhe seguiram... como o raio e a peste, a guerra abate-se sobre os campos quando menos se espera. De preferência quando os celeiros estão cheios e as jovens são belas...
            Como se vê, aqui temos um texto sem teor narrativo. Observe-se a linguagem empolada e literária, que distingue a legenda de Bourgeon. O objetivo do autor era adequar seu texto à narrativa historica (a HQ se passa na Idade Média Européia).

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

As motivações dos personagens

Todo personagem tem uma motivação, algo que o leva em frente e o faz enfrentar os desafios oferecidos pelo conflito.
Muitas vezes essa motivação pode ser representada por um ou mais objetos. Na primeira saga de Sandman, a motivação do personagem era recuperar os objetos de poder que lhe haviam sido roubados: a algibeira de areia, o elmo e o rubi.
Normalmente, os objetos materiais são apenas representações de motivações psicológicas, tanto que Sadman, após conseguir os objetos de volta, entra em depressão, pois a busca dos objetos era o que lhe dava forças para enfrentar racionalmente o fato de ter ficado tantos anos preso.
Em A Piada Mortal, a motivação do Coringa é provar que todos podem ficar loucos se tiverem um dia ruim. A motivação do Batman é exatamente o oposto. Claro que, nesse roteiro muito bem construído, as respostas não são tão simples e, no final, parece que nenhum dos dois consegue alcançar totalmente a sua motivação.
Durante boa parte da fase de Alan Moore no Monstro do Pântano, a motivação do personagem é saber mais sobre si mesmo, conhecer-se, o que leva o personagem a seguir John Constantine.
No livro Homens do Amanhã, Gerard Jones faz uma interessante análise das motivações do Capitão América, relacionando-as com as motivações de seus criadores: "Ele é o garoto subnutrido do gueto que adquire uma força desmedida ao agarrar as oportunidades americanas". Sua luta contra o nazismo é também a luta de seus criadores em busca de confiança em um mundo que perseguia os judeus. Assim, quando o Capitão América soca Hitler em uma das primeiras histórias, jogando-o no lixo, ele representa as motivações de todas as pessoas que se sentem oprimidas e gostariam de serem capazes de dar a volta por cima, vingando-se de seus opressores.
No filme UP, a motivação do velhinho ao voar com sua casa é voltar aos tempos de infância. A motivação do escoteiro, que quer ganhar mais um distintivo é, na verdade, conseguir a atenção do pai. O distintivo é apenas o objeto que representa a motivação do personagem.
Batman, o cavaleiro das Trevas, apresentou uma motivação global para o personagem ao mostrá-lo como alguém que luta contra seus próprios medos, tanto que adota a imagem dos morcegos que tanto lhe causaram pavor na infância. Essa motivação aparece, inclusive, na Piada Mortal.
Há histórias, criadas por roteiristas iniciantes, em que os personagens parecem não ter motivação. São só bonecos de palha, joguetes, que passam pela história, lutam, mas não se sabe porque estão fazendo isso. A falta de motivação os faz ocos por dentro.

sábado, 10 de agosto de 2019

O texto nos quadrinhos

A forma diz respeito à abordagem textual escolhida pelo roteirista

Chegamos à parte mais complexa do mister de quadrinhos: a forma. Nove em cada dez pessoas não tem a menor noção do que seja a forma num texto. Se perguntarmos a alguém o que achou da história, essa pessoa provavelmente se restringirá a fazer comentários sobre o enredo: "E aí tinha um monte de terroristas e o Batman chegou e deu porrada neles...". Provavelmente, se perguntarmos para essa mesma pessoa o que achou dos diálogos, ela fará cara de boba: "Como assim, tinha diálogos?".            
                A questão da forma está intimamente relacionada com o estilo, embora o estilo de um autor possa envolver diversas formas (por exemplo, a forma de Watchmen é bem diferente da forma de V de Vingança, embora ambas sejam obras do mesmo autor, Alan Moore).
                Partindo do princípio de que esse é um assunto difícil para o leigo, limitarei meus comentários apenas a dois aspectos: o texto e os diálogos.
                O TEXTO, ou legenda,  é um recurso comumente utilizado pela maioria dos bons autores. Ele geralmente aparece nas histórias  em balões quadrados, chamados de recordatários. Pessoalmente, não gosto desse nome, pois ele lembra uma época em que a única função do texto era explicar a sequência, ou mesmo o quadrinho para o leitor. Usava-se o recordatário para dizer coisas como "Enquanto isso", "Em outro lugar". "Algum tempo depois", "Flash dá um soco em Ming".
                Depois descobriu-se que o leitor não precisava que se lhe explicasse a cena (e devemos isso em grande parte ao trabalho de Will Eisner no Spirit). Se o desenho já está explicando a ação para o leitor, porque não utilizar o texto para aprofundar a psicologia do personagem, ou narrar eventos que o desenho não possa mostrar?
                Esse é em geral o segundo maior defeito dos roteiristas iniciantes: limitar o texto a contar coisas que o desenho pode mostrar sozinho. (O primeiro maior defeito é querer explicar tudo na história segundo a lógica do mundo real. As histórias têm a sua lógica própria, definida pelo roterista quando ele imagina os personagens e o universo no qual eles vão se deslocar).
                Dito isso, podemos analisar algumas técnicas de texto.

                O texto pode ser usado, por exemplo, para que o roteirista conte a história. É o que Miller faz em A Queda de Matt Murdock. Após observar a luta entre entre Matt e o Rei do Crime (na qual não há texto, pois ele seria desnecessário), vemos ângulos cada vez mais fechados de um carro no fundo de um rio, enquanto o texto diz: "O Rei é um homem cuidadoso. A morte de Murdock não deve ser nem misteriosa e nem suspeita. Não há motivo algum para investigação. Inconsciente, mas vivo, Murdock é colocado num taxi roubado. O taxi é jogado no cais 41, no rio leste. Seu cinto de segurança e a porta são emperrados por um processo indêntico à ferrugem. Murdock é encharcado de bebida".
                O texto, portanto, está em terceira pessoa e no presente, mas não está explicando o desenho, ele está contando coisas que o desenhista  não poderia mostrar em tão pouco espaço.
Texto em primeira pessoa em Cavaleiro das Trevas

                O mesmo Miller usa um tipo diferente de texto em Cavaleiro das Trevas. Em um sequência, vemos Batman escalando uma gárgula e lemos o seguinte: "A dor que já dura três dias arranha minhas costas. Eu espano o pó das articulações e subo. Isso já foi mais fácil".
                O texto, aqui, reflete os pensamentos do personagem. Por  isso, ele está no presente e em primeira pessoa. As frases são curtas para dar movimento à cena. Uma vez que as HQs, ao contrário do cinema, não têm movimento, é necessário inventar alguns truques para enganar o leitor e fazê-lo acreditar que está vendo movimento.  Um deles é escrever frases curtas e distribuí-las verticalmente pelo quadro. Miller é um mestre nesse tipo de engodo.
                Apresentei dois exemplos de Frank Miller para demonstrar como, dentro de um mesmo estilo, pode haver vários formatos de legenda. Antes de seguirmos em frente, no entanto, faz-se necessário definir alguns tipos básicos de textos. 

Exemplo de narrador em terceira pessoa

PRIMEIRO TIPO – Narrador em terceira pessoa: É quando o autor, o roteirista, tem a palavra. O texto ficará em terceira pessoa e o narrador, portanto,  não faz parte da história. A história Castelos de Areia, de Gerry Boudreau e publicada na extinta revista Kripta, é um exemplo disso. Enquanto vemos uma mulher correndo, o texto diz: “Estava frio e escuro no túnel, como no útero de uma mãe morta. Ela sentiu o ar penetrar por sua pele e cobrir suas artérias como uma fina camada de gelo”.
Texto em primeira pessoa


SEGUNDO TIPO – Narrador-personagem - é quando um dos personagens narra a história.  Um exemplo disso é a história de piratas que o garoto está lendo em Watchmen:  "Acordando do pesadelo, me encontrei numa lúgubre praia entulhada de cadáveres. Ridley jazia próximo de mim. Os pássaros devoravam seus pensamentos e memórias". Esse tipo de texto também pode ser uma continuação do diálogo, quando a imagem mostra algo do passado. Nesse caso, o texto deve vir entre aspas.

Gerry Conway usava muito o recurso do texto diálogo em sua fase no Homem-araha

TERCEIRO TIPO Texto diálogo - recurso muito pouco usado, mas bastante criativo. É quando o narrador parece estar conversando com o personagem. Gerry Conway, quando escrevia o Homem Aranha, no início da década de 70,  costumava usar muito essa técnica. Numa sequência que mostra o aracnídeo balançando-se sobre a cidade, o texto diz: "As pessoas terminam fazendo o que é preciso... mesmo que se odeiem por  isso. E você se odeia por  isso, não é Peter? Sim, com certeza". Outro exemplo é a história Shamballa, de J.M.De Mattei, com o personagem Dr. Estranho: “Mestre das Artes Místicas. Desde que assumiu esse majestoso título, parece ter eliminado a malícia e a mesquinhez de seu coração. Pena que ainda não aprendeu a sorrir. Você caminha, uma criança brincando com as sombras da memória: a imagem do desgraçado que foi se reflete na neve ofuscante”.  
                A partir desses três tipos básicos é possível produzir uma enorme variedade de textos.
                Ainda sobre a legenda é importante considerar algumas questões. A primeira delas é a uniformidade. Se a história começou sendo narrada por um personagem, refletindo seus pensamentos, por exemplo, ela deve ser narrada pelo personagem até o fim, sob pena de dar a impressão para o leitor de que o personagem deixou de pensar. Por outro lado, se começamos no presente, é bom continuar no presente.

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