quarta-feira, 29 de maio de 2013

O Marvel Way

O marvel way é uma modalidade de roteiro em que o roteirista discute com o desenhista, ou lhe entrega uma sinopse, e este desenha as páginas, que são posteriormente devolvidas ao roteirista para que sejam colocados os textos e diálogos. É chamado assim porque foi um método criado por Stan Lee e utilizado por todos os roteiristas da casa das ideias. Há um grande preconceito contra o marvel way. Uma pessoa, por exemplo, me dizia que Stan Lee não era co-autor das histórias, uma vez que ele se baseava no desenho pronto.
Houve uma época, nos primórdios dos quadrinhos em que o texto era realmente redundante com relação à imagem e até desnecessário. Arte: Antonio Eder

Essa visão equivocada e preconceituosa parte da ideia de que o texto é apenas um complemento do desenho numa história em quadrinhos. Isso podia até ser verdade nos primórios dos quadrinhos, quando o desenho mostrava o herói batendo no bandido e o texto dizia: "O heroi bate no bandido". Da Marvel para cá, o texto tem se caracterizado por permitir uma outra leitura do desenho, muitas vezes resignificando-o, como aconteceu com o Surfista Prateado, que era apenas um arauto de Galactus e, com o texto de Lee, tornou-se uma espécie de filósofo interestelar:  ¨Quando chegou a hora de estabelecer o seu padrão de discurso, comecei a imaginar de que forma um apóstolo das estrelas se expressaria. Parecia haver uma aura biblicamente pura no nosso Surfista Prateado, algo altruísta e magnificamente inocente¨. Isso é chamado de resignificar e é um princípio básico da arte moderna e pós-moderna.
Eu usei muito o Marvel em todas as histórias que escrevi com o compadre Joe Bennett. Nós discutíamos a história, o Joe muitas vezes fazia o rafe na minha frente e eu colocava o texto em cima do rafe.
Era sempre um desafio, pois Joe Bennett é da escola de Jack Kirby, John Buscema e Garcia Lopez, todos grandes narradores visuais. Ou seja: ele parecia contar toda a história apenas com imagens. Então logo descobri que meu texto deveria criar uma camada a mais de leitura e interpretação.
Uma das páginas que, lembro, me deram muito trabalho, foi a cena da história O farol. Na história, um casal de namorados encontra um farol desconhecido em uma praia deserta e decide investigar. Quando estão lá dentro, acabam se perdendo (não, não vão contar o resto). Na sequência abaixo, Fábio se separou de Cassandra e vai se desesperando aos poucos ao não conseguir encontrar a saída. Lembro que quando peguei a página rafeada, pensei: "Caramba, o que vou colocar aqui? O Joe já contou tudo com desenhos!". No final, o texto cria uma camada a mais de leitura, permitindo que o leitor conheça o personagem, sua história de vida e motivações. E, claro, termina com uma ironia, que só funciona em conjunto com o desenho...

Na história A Família Titã, eu o Joe não tivemos tempo para conversar sobre os detalhes da história. O compadre precisava de dinheiro urgente e o Franco havia nos pedido 30 páginas para duas semanas, com tudo pronto. Algum tempo depois, descobrimos que, para o Joe, o Tribuno era o vilão, afinal o desenho o mostrava praticando as mais terríveis barbaridades. Mas para mim ele era o heroi, e o texto justificava suas ações, dando uma motivação para o personagem. E até hoje muitos leitores fãs da dupla debatem se ele é um vilão ou um heroi. Eis um exemplo de  como texto e desenho podem permitir várias leituras de uma obra numa história em quadrinhos.
Na Refrão de Bolero, uma moça viaja para Belém e se encanta com Belém e diz que ela é uma cidade de cartão postal. No final, quando é assaltada e se vê sozinha e perdida, sem dinheiro ou conhecidos numa cidade que de fato não conhece, ela diz: "Agora tudo que eu tenho é um profundo corte na mão e uma cidade de cartão postal". O texto, além de dar um duplo sentido para a expressão "cidade de  cartão postal" (positivo no início, negativo no final), apresenta os sentimentos da personagem de uma forma que o desenho não poderia fazer. Vale lembrar que a ideia da história surgiu quando eu fui assaltado em Belém.
Os quadrinhos, portanto, são uma junção de texto e desenho em que nenhum é mais importante que o outro e a coisa só funciona se houver harmonia entre eles.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Nelson Padrella, o poeta dos quadrinhos

Pouco conhecido das gerações atuais, Nelson Padrella é um dos melhores roteiristas de quadrinhos de todos os tempos. Em plena década de 1970 ele escrevia para a editora Grafipar roteiros eróticos que misturavam quadrinhos com poesia para os quadrinhos, antecipando o que seria feito posteriormente por artistas como Alan Moore, Neil Gaiman e Edgar  Franco.
Abaixo uma entrevista que fiz com ele por e-mail:

1 - Quando você começou a escrever ficção? 
Tive um ótimo aprendizado no ginásio de Palmeira, onde me foi incutido o gosto pela leitura e, em conseqüência, pela experiência de escrever. Como tenho mania de grandeza, minha primeira obra foi um romance, inédito até hoje e sempre. Palmeira não oferecia muita chance para um adolescente. Ou era roubar fruta nos quintais e ser um mau menino ou era fazer o que fiz e me tornei um rato de biblioteca. A velha biblioteca de Palmeira não tinha lá grande riqueza, principalmente naqueles remotos anos 50.
Minha saída de Palmeira e chegada a Curitiba deu-se no fim daquela década, e logo me enturmei com o grupo de intelectuais da cidade: Walmor Marcellino, Sylvio Back, René Dotti, Helio Puglielli e outros. Com a chegada dos militares ao Poder, fomos os primeiros a lançar um livro de ficção contestando o Golpe. Sete de Amor e Violência trazia trabalhos de sete escritores comunistas porque era comunista todos aqueles que criticassem a nova ordem. Foi minha primeira ficção publicada. Depois vieram outros livros, prêmios nacionais e estaduais. Até o lançamento de Meu Bimbim, prêmio Melhor Paranaense em concurso nacional.
2 - Como você começou a publicar na grafipar? É verdade que o Faruk disse que o seu primeiro roteiro parecia ter sido escrito por uma freira? 
A importância da Grafipar para mim foi que ela acenava com a possibilidade de eu fazer o que mais gostava de fazer: Escrever (e pintar). E ainda me pagariam por isso. Apresentei ao Faruk um texto para quadrinização. Foi lido e devolvido, parece que faltou pimenta. Então, imbuído das minhas melhores sacanagens escrevi uma história realmente picante – e esse picante aí não está gratuito. Entreguei em mãos do Faruk, talvez até achando que ele me admoestaria pelo conteúdo do texto mas, após ler minha encíclica, disse que esse seria um texto que até a madre superiora poderia redigir. Isso mexeu com os meus brios e a partir dalidepravei geral, para gáudio da HQ e desgáudio da caretice da época.
Padrella costumava colocar referências aos amigos quadrinistas nas histórias, como nessa página. 

3 - Você lia quadrinhos na época? Que tipo de quadrinho lia? Quais eram suas influências? 
Comecei a ler quadrinhos quando ainda não sabia ler. Explico: Morava no Rio de Janeiro e meu pai trazia o jornal e dentro dele suplementos do Gibi e do Globo. (Havia revistas de HQ com esses títulos: O Gibi Mensal e O Globo Juvenil Mensal, O Guri, etc., mas essas meu pai não comprava. O que eu “lia” eram os suplementos. Eu teria 6, 7 anos).  Fui morar em Palmeira em 1947 e lá sequer havia banca de revista. Era um sacrifício para meu irmão e eu conseguirmos comprar o Almanaque d’O Globo Juvenil Mensal, que passava de trem oriundo da capital. Dias e dias de tocaia na estação para localizar o jornaleiro dentro do trem e rezar para que ele estivesse nas imediações de seu revistório e não alhures oferecendo jornais aos passageiros.Quando finalmente foi aberta a Banca do Seo Zeca, na pracinha da igreja, eu lia tudo: Foi o tempo de ouro da Brasil-América. E essa editora não parava de lançar títulos novos, em todas as áreas. Haja mesada!

4 - Você acompanhava as histórias depois que elas eram publicadas? Conferia como ficava?
Final dos anos 60 vim morar definitivamente em Curitiba. Pintava telas e vendia bem, e fiz nome no cenário das artes plásticas nacionais. A entrada no mundo das HQs deu-se por acaso. Fui convidado para mostrar meu trabalho e o resto você já sabe. Quando meu texto passou a agradar ele era disputado pelos maiores quadrinistas do país; Shimamoto, que só desenhava o que ele próprio escrevia, pedia textos meus. Outro que só trabalhava na base do “eu faço tudo” foi o Eros Maichrowicz, que também pedia textos meus. Até Claudio Seto, em cuja criação Maria Erótica ninguém botava a mão, aceitou minha colaboração. Eu procurava ficar sempre com um ou mais exemplares de todas as revistas da Grafipar. E meu desvelo valeu porque enriqueceu a recente mostra de quadrinhos de Curitiba. E é interessante você ver um texto seu quadrinizado, principalmente se o desenhista enriquece seu trabalho.

5 - Qual era o seu desenhista predileto? 
Eu gostava muito da delicadeza dos traços mágicos de Rodval Matias, acho que era meu preferido. E também amava o traço ousado de Eros Maichrovicz. E alguns outros, como mestre Shimamoto, de que me lembro.

6 - Você foi um dos primeiros a colocar poesia no texto quadrinístico. Você já tinha visto alguém fazer isso, ou foi intuitivo? 
Aos desenhistas agradava meu texto porque fugia do convencional (preparação para transa e a transa em si). Eu inventava um certo surrealismo que,  se podia destoar do enfoque principal (a transa), por outro lado enriquecia a história, levando o leitor a outro patamar. Os desenhistas deviam estar enjoados da mesmice, e lá vinha o velho Padrella com seu lirismo, criando um pouco de música, um tango argentino dançando entre os personagens. Na realidade, era-me muito penoso escrever a coisa crua, o ato sexual sem arte. Um pouco de “poesia” levava a história para o campo da arte, e isso agradava ao leitor e a mim. Foi tudo intuitivo.

7 - Como era o seu processo criativo? 
Para criar histórias não havia na realidade um processo. Era sentar diante da Remington, colocar ali a lauda e mandar bala. A coisa fluía como se outro que não fosse eu tirasse as rédeas de mim e cavalgasse livre pelos campos da criatividade.

8 - Como você começou a escrever histórias gays? 
Ah! Isso de histórias gays é bem interessante. Pululavam em todo território nacional leitores ávidos pelas revistas da Grafipar. E dá-lhe a editora a lançar novos títulos. Começou com histórias de amor e a revista capitã foi Eros. Durou pouco porque já havia esse título alhures e Eros mudou de nome e ficou sendo Quadrinhos Eróticos. Em seguida, a mente incansável de Claudio Seto passou a apresentar à empresa uma gama de possibilidades. Tudo intimamente atrelado a sexo. Era sexo no faroeste, era sexo de terror, era sexo cobrindo todas as áreas. Sempre com muito sucesso. Tinha até leitor que, entusiasmado com o sucesso da Grafipar, incendiava bancas de revistas. Mas isso já outra história. Bom.
Não lembro exatamente como foi. Sei que encurtava para nós escritores os horizontes das possibilidades. Afinal de contas, tudo se resumia entre mulher procura homem, homem procura mulher. Estavam vetados certos rumos como zoofilia, religiões, militares, pedofilia. Isso causava pruridos em mim, que sempre fui provocador. Então, escrevi histórias com animais, que foram aceitas porque estariam dentro das normas. Botei freira na jogada. Inseri “dimenor” no jogo do sexo, o que contrariava o disposto em lei. Mas tudo foi escrito de maneira a encobrir com o pálido véu do lirismo as verdadeiras e sacanas intenções. Fui um infrator, reconheço. Mas homossexualismo, não. Jamais! Onde é que se viu! No entanto, provocador como sempre fui, pincelava aqui e ali uns lances estranhos. Em seguida, Seto abria o olho para mais essa possibilidades e a Grafipar  abriu as portas para o texto GLBTS&Cia. (Rose, uma revista de texto, dirigida aos rapeize, tinha sempre uma história curta de amor gay). Esclareço que não era fácil levar os desenhistas, tudo maxo de carteirinha, a desenhar histórias nessa linha. Acredito que fui o único escritor a criar textos gays para a Grafipar.



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails