segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Entrevista com Ataíde Braz

Ataíde Braz foi um dos mais importantes roteiristas da segunda geração de quadrinistas brasileiros. Além de roteirista, ele exerceu a função de editor. Conheça, nesta entrevista um pouco da carreira desse importante escritor:

Onde e quando nasceu?
R: Nasci em 26/08/1955 em Mirandiba, uma vila no sertão de Pernambuco. Pertencia a Comarca de Arco Verde e atualmente é um município..
Como foi a sua infância? Lia muito gibi?
R: Passei a minha infância em Serra Talhada, PE. Foi boa, apesar das limitações, pois a minha família era muito pobre. Como não havia televisão despertando a minha cobiça para coisas que eu não podia ter, vivia feliz com o que tinha. Minha memória sempre foi emocional, por isso minhas lembranças são fragmentadas. Lembro de quando subia a serra, de quando ia ao açude pescar, essas coisas.
Nesta época eu não conhecia os quadrinhos ainda. O único quadrinho que tinha visto foi um gibi do Roy Rogers. Não me despertou muita curiosidade. Mas lembro-me de dois fatos que são responsáveis pelo nascimento do narrador, do contador de histórias. O primeiro destes fatos foi tornar-me aprendiz do responsável pelas projeções de um dos cinemas da cidade. Fazia cortes nos filmes. Eram retiradas cenas de beijos. O curioso é que filmes de ação com muitas mortes violentas eram exibidos sem cortes, exceto para reduzir o tempo de projeção. Minha função era olhar a fita e marcar as cenas que deveriam ser cortadas. Eu tinha uns 8 ou 9 anos. Com esse trabalho informal eu conseguia assistir filmes de graça e ainda ganhava os fotogramas cortados. Infelizmente esse responsável tinha mania de dar tapas e cascudos quando o aprendiz cometia um erro. Como, por exemplo, não marcar uma seqüência onde a mocinha oferecia os lábios para o mocinho. Mas aprendi que tinha que prestar atenção na ação anterior. Por causa dos cascudos os aprendizes não ficavam muito tempo “aprendendo” a profissão.
O segundo fato era o prazer em ouvir uma preta velha contar história de “trancoso” (“causos” de terror) para a molecada, todos sentados na linha do trem. Aprendi com essa senhora a contar histórias. Ela foi a minha primeira professora na arte de contar histórias. Infelizmente não lembro o nome dela.
Quando conheci o aprendiz anterior, tivemos a idéia de juntar nossos fotogramas e assim fazer um “filme” e cobrar ingressos! Eu montei os fotogramas em uma ordem coerente, e narrei a “história” enquanto era projetada. O meu amigo fez o projetor com uma caixa de sapato. Eu não tinha noção da complexidade do que tínhamos feito. Mesmo não sendo uma “obra prima”, foi um sucesso. Esse “amigo” achou que não precisava de mim. E me tirou do negócio, afinal o projetor, a sala da casa e a maioria dos fotogramas, eram dele. Não demorou muito a perceber que o trabalho de colar os fotogramas não era só passar a cola e juntar. E a narração da história também perdeu muito da sua criatividade. Esse “cinema” acabou no segundo filme. E eu descobri que não precisava levar cascudos para assistir filmes de graça. Podia pular o muro como os outros garotos. De todos os aprendizes, creio que fui o que menos levou cascudo.
Quando veio a conhecer os quadrinhos e se interessar por eles?
R: Em 1966 meu pai trouxe toda a família para São Paulo. Foi nesta época que conheci os quadrinhos. Tio Patinhas, Donald, a linha Disney da época. E fiquei maravilhado. Eu não sabia ler, mas a partir das imagens, construía histórias!
Meu irmão mais velho lia os quadrinhos, quando estava de bom humor. Depois ele se recusou a ler, creio que para me fazer ler de verdade. Lembro que o primeiro gibi que li, soletrando em voz alta, sem inventar a história, foi uma edição com a primeira história do Superpateta publicada no Brasil. (“Superpateta e Barzan”, algo assim). Desta história por diante, comecei a conhecer outros tipos de quadrinhos.
Na sua infância realizou alguma história em quadrinhos? Como foi essa experiência?
R: Não. Desenhava os personagens, copiando as cenas, isoladamente, sem ordem coerente. De certo modo isso foi determinante para a minha decisão, anos mais tarde, de ser desenhista de quadrinhos.
Quais eram os quadrinistas e os heróis de sua preferência?
R: Eu não tinha autor preferido ainda. Nem sabia quem era quem. Gostava do “Cavaleiro Fantasma”, “Águia Negra”, “Flecha Ligeira”. Depois veio o Hulk, Homem de Ferro, Namor, Thor e o Demolidor nas edições da Shell e depois pela Ebal. Devorava tudo que encontrava nas bancas de revistas usadas. Foi paixão a primeira vista. E paixão proibida, tolerada apenas enquanto serviam como interesse para eu aprender a ler. O pensamento corrente na época era que quadrinhos faziam mal a saúde mental da juventude. Meu pai me proibiu de ler. Assim eu tinha que contrabandear os gibis para dentro de casa enfiados na calça e cobertos pela camisa. Escondia os gibis embaixo do colchão. Periodicamente eles “sumiam”. E eu tinha que ouvir um sermão para parar de ler “aquelas” porcarias. Não culpo o meu pai, ele fazia apenas o que os “doutores” da época recomendavam que os pais fizessem.
Qual foi o primeiro desenhista de quadrinhos que chamou sua atenção?
R: Nos primeiros quadrinhos que li não prestava a atenção nos nomes dos autores. O primeiro que chamou a minha atenção foi o Fernando Ikoma. Se visse o nome dele na revista eu fazia de tudo para comprar. Gostava de Satan, a alma penada e de Fikom. Os outros autores nacionais eu acompanhava mais pelos personagens, tais como: “Lobisomem”, do Gedeone Malagola e Nico Rosso e quase todas as revistas da extinta Taika e da Edrel.
Até os meus catorze anos eu era um leitor crítico. Analisava as histórias. Intuitivamente. Creio que foi em uma revista do Batman que peguei o hábito de dissecar a história até chegar no “esqueleto”. Por causa disso parei de ler Super homem, superboy, Batman, etc. Percebi que as histórias eram sempre as mesmas com algumas variações.
Dos 14 anos até 17/18 anos estive mais interessado em dançar apertado com as garotas. Só pensei em ser desenhista de quadrinhos quando comecei a me preocupar com o futuro. Queria se médico, psicólogo algo neste sentido. Mas a faculdade de medicina era algo muito distante.
Antes de ser roteirista de quadrinhos, teve alguma profissão?
R: Não. Trabalhei em uma metalúrgica e também em uma construtora. Mas não me adaptei ao trabalho e fiquei pouco tempo trabalhando. Cheguei a pensar em ser enxadrista profissional, pois era um jogador razoável. De tudo que pensei em fazer para ganhar a vida, ser desenhista era o que me parecia mais concreto.
Quando foi que teve a idéia de tornar-se um roteirista de quadrinhos?
R: Em 1976 fui fazer um curso de desenho comercial no Senac. E neste curso eu conheci o Silvestre Mendonça (o professor), meu primeiro Guru. Neste curso também conheci o Kussumoto e o Seabra (que era amigo do Silvestre e apareceu lá para visitá-lo). Foi à primeira vez que conheci pessoas que também pretendiam ser quadrinistas.
No final do curso os alunos tinham que fazer uma revista, uma campanha publicitária, etc, para uma exposição no SENAC. Eu escrevi uma história de 12 páginas para o Kussumoto desenhar, pois seu traço era melhor que o meu. O personagem chamava-se “Manco Capac”. Foi a primeira história que escrevi. Antes eu apenas desenhava, sem construir qualquer história. O Kussumoto comentou que se a gente fizesse uma dupla, tínhamos chances de entrar no mercado mais cedo. E eu pensei que iniciando como roteirista abriria caminho para me tornar desenhista mais tarde. Reescrevi a mesma história em 32 páginas e em 1977 começamos a visitar as editoras.
Qual foi a primeira editora que publicou uma história em quadrinhos sua?
R: Foi a Editora Vecchi, na edição número quatro da Spectro, em janeiro de 1978. A história chamava-se “O Bode”, uma história de lobisomem.
Como foi o seu ingresso no mercado editorial? Foi fácil ou teve alguma dificuldade?
R: Não foi difícil. Tivemos poucas decepções antes de conseguir publicar a primeira história. “Manco Capac” se mostrou inviável, por ser muito longa. Escrevi três histórias depois; “Caçada Mortal” e “Lúcia” com as quais pretendíamos publicar na Kripta ou, segunda opção, na Vampirella da Editora Noblet. Não tivemos sucesso em nossa pretensão. Com estes trabalhos visitamos a Abril e a Noblet. Fomos muito bem recebidos na editora Abril pelo Primaggio e o Rui Perotti. Não havia como utilizar o nosso trabalho nesta editora, mas nos estimularam muito a continuar. Na Noblet conhecemos o Paulo Hamasaki. Ele nos esclareceu que na Vampirela só podiam publicar material da Warren.
Mesmo assim, com uma carta do Primaggio nos apresentando a um amigo da Rio Gráfica e Editora, fomos para o Rio. Não posso dizer que tenham nos maltratados na editora, mas fomos tratados com um profissionalismo distante. Gentilmente nos fez entender que não deveríamos mais encher o saco.
A decepção foi tanta que, mesmo estando hospedados em um hotel quase vizinho da Vecchi, não ficamos estimulados em visitá-la, com medo de ter outra frustração. A nossa visita à Abril e a Noblet tinha sido muito diferente. Saímos destas editoras estimulados e convidados a retornar quando quiséssemos para mostrar outros trabalhos.
De volta a São Paulo, o Kussumoto viu na Spektro o anúncio de dois especiais. Um de vampiros e outro de lobisomens. Resolvemos tentar publicar algo nestes especiais. Escrevi a história “Semente do mal” e “Noite da vingança”, uma história de 20 páginas dividida em duas partes. Antes de terminar de desenhar o Kussumoto achou que não terminaria a tempo. Escrevi outra, de 12 páginas, visando o especial de lobisomem. Então fomos para o Rio novamente, levando na bagagem a história “O Bode”, “Caçada Mortal” e “Lúcia” (Desenho do Seabra com arte final do Kussumoto). Fomos recebidos pelo Ota (Otacílio D`Assunção) como VIPS! Nos hospedou em sua casa e a noite nos levou a residência do Shimamoto! Escolheu a história “O Bode” para publicar na Spektro 4. Retirou uma história importada para abrir espaço para o nosso trabalho.
Como foi que começou a trabalhar na Grafipar?
R: O Seabra nos avisou sobre a Eros, uma revista de história em quadrinhos eróticos. O dono de uma banca de revistas, amigo do Franco de Rosa e do Seabra, conhecia o Faruk, o editor da Grafipar. Escrevi uma história de quatro páginas (Uma ilha, um naufrago...) e, junto com o trabalho do Seabra e do Franco, deixamos com o jornaleiro. E esperamos. Como não veio resposta, fui para Curitiba, fazer um contato direto. A recepção foi muito boa. Fiquei hospedado na casa do Seto. Voltei para São Paulo entusiasmado, com um monte de idéias. Algum tempo depois, Seto veio a São Paulo e me levou a casa de um desenhista novato. Era o Rodval Matias. E assim se formou o primeiro núcleo de quadrinistas paulista da Grafipar. Eu, Noriyuki e o Franco como roteiristas, Kussumoto, Seabra e Rodval como desenhistas.
E o que o você fazia na Grafipar?
R: Eu não tinha um serviço especifico no Grupo de Quadrinhos. Minha função era fazer o que fosse necessário para ajudar o Seto a fechar as revistas. Eu lia roteiros e os remetia para os desenhistas. Respondia cartas dos leitores e dos colaboradores. E, interceptava as HQs importadas que eram enviadas para apreciação do Faruk. O destino deste material era a gaveta.
Você trabalhou na Grafipar durante quanto tempo?
R: Internamente trabalhei uns sete meses. Como roteirista trabalhei na Grafipar durante todo o tempo em que esteve ativa. Afastei-me definitivamente quando ela estava próxima de fechar as portas.
Chegou a se mudar para Curitiba? Como era a vila dos quadrinistas?
R: Sim. Fui o primeiro quadrinista a se mudar para Curitiba. Depois vieram o Itamar Gonçalves, O Franco de Rosa, Gustavo Machado, Fernando Bonini, etc. Eles eram vizinhos, muro a muro, no bairro Três Marias.
Como eram feitas as seleções das histórias a serem publicadas nas revistas?
R: No dia do fechamento eram escolhidas as histórias que havia chegado na redação. Havia um pré-fechamento, pois sabíamos, mais ou menos, o que os desenhistas estavam desenhando e quando enviariam o trabalho para a editora. Eu auxiliava o Seto na escolha, mas a decisão final era dele. Não me lembro dele ter, por qualquer motivo, vetado o trabalho de ninguém. Toda a produção de cada profissional era utilizada. Até aquelas que eram recusadas por outras editoras. Isso transformou a Grafipar na preferida pelos desenhistas. Com o crescente aumento dos títulos, quase tudo que eles desenhavam em um mês eram programados e pagos no mês seguinte. O esquema só não era bom para os roteiristas. Eles não eram vistos como um profissional independente (E, até hoje é assim.). Não importavam quantas páginas o roteirista escrevesse no mês. Só receberiam pelas histórias que fossem desenhadas e programadas em alguma revista.
Os desenhistas tinham que desenhar os roteiros enviados pela Grafipar?
R: Não. Se o desenhista optasse por desenhar suas próprias histórias, tudo bem. Tanto fazia se a história fosse boa ou ruim. Alguns desenhistas, como o Shimamoto, preferiam pegar os roteiros enviados pela Grafipar. Assim ganhava tempo para desenhar. Creio que foi ele quem mais desenhou para a Grafipar. O Itamar Gonçalves era outro que pegava os roteiros. O Eros fazia seus próprios roteiros, mas também pegava muitos roteiros dos roteiristas.
No período de crescimento da Grafipar, a situação do roteirista mudou?
R: Não. O roteirista não tinha qualquer status na Grafipar. Eram tidos como um auxiliar dos desenhistas, para eles não perderem tempo escrevendo histórias e poderem desenhar mais. Claro que isso nunca foi verbalizado, mas a atitude da editora em relação aos roteiristas era essa.
Quais eram os roteiristas que mais produziam?


Carlos Magno e o Padrella competiam entre si para ver qual produzia mais durante o mês. Deste modo garantiam que a maioria das histórias, programadas e publicadas, tinham as assinaturas deles.
E você?
R: Eu perdia feio nesta competição, nunca fui um profissional de grande produção. Gostava, e gosto, de elaborar as histórias. Além disso, como tinha meu salário na Grafipar, por isso só escrevia roteiros para o Kussumoto e para alguma edição específica ou quando entrava na competição criativa que havia entre os roteiristas.
Que competição era essa?
R: Quando um escrevia uma história boa, os outros procuravam superar no mês seguinte. O prêmio desta competição, também não declarada, era receber o elogio dos outros. Creio que esta competição, aliado, é claro, ao senso profissional, foi responsável pelo bom nível de boa parte das histórias publicadas na Grafipar, pois da editora os roteiristas nunca receberam qualquer estimulo para produzir boas histórias.
Quais eram os roteiristas envolvidos nesta competição?
R: Eu, o Padrella, o Carlo Magno e o Fischer. Era uma competição sadia, pois reconhecíamos o talento do colega e queríamos superar um trabalho que julgava bom.
Para quais editoras você trabalhou?
R: Trabalhei para a Editora Vecchi, Grafipar, Ebal, Abril, Rio Gráfica e Editora (Estas duas através de estúdio, uma história do Bionicão, na RGE e uma história do Zillion, na Abril), D-Arte, Nova Sampa, Noblet, Press Editorial, Editora Toni Fernandes, Escala, Opera Graphica e algumas editoras da Europa.
Qual foi o seu melhor trabalho como quadrinista?
R: É difícil escolher. A história “Quinto Grau”, por exemplo. Eu havia cismado de escrever uma história em quadrinhos sem desenho. Chegar à essência da linguagem. Mas todas as minhas tentativas resultavam em roteiro. Quando desisti, passei o roteiro para o Kussumoto. Então, gosto muito desta história, é o resultado desta minha procura pela essência, a linguagem dos quadrinhos. (Anos depois percebi que a literatura de cordel é quadrinho puro, na essência, sem desenhos). E gosto de “Mulher Diaba no rastro de Lampião”, por ter sido desenhada pelo mestre Colin. No erótico gosto muito de “Made in Japan” e “Tatuagem”. Mas, se tenho que escolher uma, escolho “Drácula, a sombra da noite”.
Com quais desenhistas você trabalhou? Destacaria o trabalho de algum?
R: Trabalhei com o Roberto Kussumoto, Neide Harue, Flávio Colin, Franco de Rosa, Seabra, Itamar Gonçalves, João Pacheco, Silvio Spotti, Paulo Yokota, Roberto Fukue, Paulo Hamazaki, Sérgio Lima, Álvaro Rios e Luri Maeda. Cada um deu o melhor de si no trabalho.

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