sábado, 30 de agosto de 2025

Lembrança: O erotismo poético de Nelson Padrella

 


Quando comecei a escrever quadrinhos eróticos, ali pelo ano de 1992, eu não queria repetir os chavões de histórias desse tipo, que geralmente se limitavam a monossílabos, interjeições, onomatopeias e palavrões.

Então, minha grande inspiração foi o grande escritor curitibano Nelson Padrella, em especial uma história chamada “Lembrança”. Padrella era um dos principais roteiristas da editora Grafipar e nessa história em específico conseguiu com perfeição o tom poético que eu queria para meu texto.

Há uma curiosidade sobre essa história. Ao assinar a história, o desenhista Rodval Matias colocou o ano de 1986. Acontece que a Grafipar terminou em 1983. Nem o próprio Padrella consegiu explicar essa incoerência. É possível que o desenhista tivesse recebido esse roteiro na época da Grafipar, mas só o desenhou três anos depois do fim da editora. De fato, eu li essa história numa revista da Nova Sampa.

A HQ fala de um encontro de dois adolescentes num dia de chuva.

O rapaz está passando, todo molhado pelo portão de uma casa, quando a moça o chama. O tom é não só poético, mas saudosista, como se alguém mais velho estivesse se recordando de um passado longíncuo e idílico: 

“Chove muito... e a chuva é a mesma daquele dia... era setembro ou outubro, não recordo direito. Ainda o frio do inverno pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba. eu encontrei você no portão de sua casa, disse “olá”, com displicência, assim como quem vai embora... você sorriu!”. 

O clima é de saudosismo expresso pela expressão "é a mesma chuva daquele dia". O poético, que já aparecia desde o início, fica explícito no trecho "Ainda o frio pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba". O roteirista-poeta brinca com as palaras: o frio se refere ao tempo (tardes), mas também ao local (jardins de Curitiba). 

A distribuição do texto, com apenas a expressão "Você sorriu" no último quadro, transforma essa página numa verdadeira poesia visual ao mesmo tempo em que transmite a solidão e tristeza do personagem, que olha saudoso para o portão aberto da casa vazia. 



A página seguinte mostra a mesma imagem, mas de outro ponto de vista, e agora vemos uma garota no portão convidando com as mãos o rapaz a entrar. 

O texto diz:  

“Era setembro ou outubro, não me lembro bem. Só lembro que depois de tanto tempo passei pelo portão da sua casa e você estava lá... e sem dizer palavras convidou-me com um gesto meigo. Não resisti e disse sim com os olhos. Saímos da chuva para dentro da sua casa que rescendia a aromas raros... cheiro de cravo e açúcares, algo de baunilha e infância...”.
  

O texto aqui é sutil e cheio de insinuações. Ela faz um “gesto meigo” e ele “diz sim com os olhos”. Os aromas da casa remetem ao café que ela está preparando, mas também são simbólicos: o cravo insinua sexualidade e afrodisíaco (vale lembrar que um pouco antes fizera sucesso uma novela chamada Gabriela cravo e canela, que se destacava exatamente pela protagonista sensual interpretada por Sônia Braga). A baunilha, como o próprio texto diz, representa infância, ingenuidade, dando a entender que essa teria sido a primeira relação sexual do garoto.

Padrella brinca novamente com as palavras, fazendo algo que se parece com a sinestesia, em que os sentidos se misturam, mas aqui ele mistura sentidos com idade. 



Na terceira página vemos novamente um texto que surpreende o leitor e remete ao poético: 

“Meus olhos procuravam os teus com frequência. Mas foram nossas bocas que se encontraram primeiro”. 

Uma outra curiosidade sobre essa história: na época em que foi desenhada o mercado já pedia histórias explícitas, de forma que o desenho de Rodval mostra explicitamente toda a relação sexual, em absoluto contraste com o texto intimista de Padrella. Mas mesmo assim, Rodval acerta ao fazer os dois protagonistas com um ar de adolescentes, mantendo, visualmente, a ingenuidade e saudosismo da trama.

Enfim, uma história curta, mas uma verdadeira obra-prima dos quadrinhos nacionais. 

Para ler a história completa, clique aqui

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Roteiro para quadrinhos: Texto narrativo – texto redundante

 


Algo fundamental, uma das primeiras lições para um futuro roteirista de quadrinhos, é que o texto nunca deve ser redundante. Em outras palavras, nunca se deve dizer com as legendas ou com os diálogos aquilo que o leitor está vendo.
Mas algumas pessoas confundem texto redundante com texto narrativo. Embora possam parecer semelhantes, não são. O texto narrativo, embora não explore toda a potencialidade dos quadrinhos, não chega a ser um erro. Já o texto redundante se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo é erro feio.
Imagine uma cena: um casal andando pelo deserto em pleno dia, o sol acima deles e nada por perto além da areia escaldante.
Um texto narrativo possível para a cena seria: “O casal andou por horas a fio sob o céu escaldante sem encontrar um único indício de vida ou civilização. Se não encontrassem logo água, iriam morrer no deserto”. Observe que há várias informações incluídas no texto que não aparecem na imagem (o casal está andando por horas, não encontraram sinal de vida em toda a caminhada, logo vão morrer de sede).
Um texto redundante sobre a mesma cena seria: “O casal anda no deserto sob o sol escaldante”. Neste caso, o texto se limita a dizer aquilo que o leitor está vendo, sem acrescentar nada à informação visual.
Percebam como o texto redundante se limita a descrever a imagem que está sendo vista pelo leitor. Ou seja, é totalmente desnecessário.
Um exemplo de texto redundante pode ser encontrado na página da série Os Eternos, de Jack Kirby, publicada em Superaventuras Marvel 25.
Observe os dois primeiros quadrinhos. Eles mostram a nave dos desviantes entrando por uma cabeça de pedra e singrando em direção a uma abertura luminosa. O que o texto diz? O que o leitor está vendo: “Logo uma enorme cabeça de pedra surge à sua frente. Penetrando pela boca do dragão, a nave avança rumo a uma abertura luminosa”.

Um outro exemplo de texto redundante pode ser encontrado na versão quadrinística da história A torre do elefante, com textos de Roy Thomas e desenhos de John Buscema. Conan e outro ladrão estão no pátio da torre quando encontra com cinco leões. O diálogo diz: “Leões! Cinco deles!”.
Curiosamente, na mesma página há um exemplo de ótimo uso do texto quadrinístico, inclusive como elemento de suspense. O ladrão nemédio empurrou Conan para trás, fazendo com que ele parasse. O texto diz: “Seu olhar está fixo em arbustos poucas jardas à frente... arbustos que continuam se movendo, embora o vento tenha morrido”. O texto narra a aproximação de algo que o leitor não é capaz de identificar visualmente (só depois, no quadro de impacto ele descobrirá que são leões).

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A jornada do escritor

 

Em 1949 Joseph Campbell publicou o livro O herói das mil faces no qual defendia que a maioria dos mitos mundiais são na verdade a mesma história recontada em variações ilimitadas. Anos depois Christopher Vogler sistematizou essa teoria em um dos mais importantes livros de roteiro de todos os tempos, A jornada do escritor.

Vogler argumenta que as histórias são verdadeiros mapas da psique, modelos precisos da mente humana, psicologicamente válidos e emocionalmente realistas mesmo quando retratam eventos fantásticos, impossíveis ou irreais.

Essas histórias, que normalmente tratam de transformação, apresentam a jornada de um herói com passos muito claros: o herói abandona seu ambiente confortável, aventurando-se em um mundo mágico, onde surge um conflito com forças antagônicas: “Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, empreendendo uma jornada de um modo de ser para outro: do despero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria”, explica Vogler.

Esses passos da jornada foram sitematizados pelo escritor na seguinte sequência: o mundo comum, o chamado à aventura, a recusa do chamado, o encontro com o mentor, a travessia do primeiro limiar, as provas, aliados e inimigos, a aproximação da caverna secreta, a provação, a recompensa, o caminho de volta, a ressurreição e o retorno com o elixir.

O livro não só destrincha cada um desses passos, mas também analisa os personagens arquetípicos que aparecem nessas histórias, como o mentor, o pícaro, o guardião do limiar, o arauto, a sombra e o camaleão. Cada um desses é analisado não só com relação à sua função na história, mas também a sua função psicológica.

O mentor, por exemplo,  é um personagem que ensina, protege o herói e lhe concede presentes. A origem do termo vem da Grécia antia. Na Odisséia, de Homero, Mentor era o guia do jovem Telêmaco em sua jornada. O mentor também tem a função narrativa de ser a consciência do herói, guiando-o por um código moral. Psicologicamente, mentores representam o self: “Como o Grilo Falante na versão da Disney de Pinóquio, o self age como uma consciência para orientar na estrada da vida quando não há Fada Azul ou gentil Gepeto para nos proteger e dizer o que é bom ou ruim”.

O livro de Vogler, por ter inaugurado a abordagem mitológica na construção de roteiros, é obra de leitura obrigatória. É uma obra também muito criticada por ter dado origem a uma receita para histórias, especialmente depois do sucesso de Guerra nas Estrelas, uma crítica pertinente, embora essa receita tenha surgido de uma leitura superficial da obra. No geral, Vogler parece mais interessado em discutir possibilidades do que em fechar padrões a serem seguidos rigidamente.

Há alguns aspectos problemáticos, no entanto: o livro poderia ser facilmente sintetizado sem perda de conteúdo – algumas vezes a mesma ideia é repetida várias vezes. Além disso, o autor tem uma verdadeira fixação pelo Mágico de Oz, e cita o filme em praticamente todos os itens e subitens. O mesmo pode ser dito a respeito do filme Tudo por uma esmeralda. Mas ignora obras que também são nitidamente calcadas na jornada do herói, como o desenho animado Caverna do Dragão.

Ainda assim, vale a leitura. 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O roteiro para quadrinhos e o cavalo dançarino

 

Nat Muniz parece ter nascido para desenhar temas regionais e em especial cobras. 

Alan Moore conta que, quando era criança, ficou fascinado com um show em um circo em que um músico tocava um violino e um cavalo dançava. O cavalo parecia ter sido tão bem adestrado que acompanhava o ritmo da música: se o violnista tocava mais lentamente, ele fazia movimentos mais lentos, se acelerava, o cavalo acelerava também.

Já adulto, ele descobriu que o que acontecia era exatamente o contrário. O músico ensinara o cavalo a dar alguns pulinhos – e só isso. Na verdade, era o violinista que acompanhava o ritmo dos movimentos do cavalo.

Segundo Alan Moore, o que acontece na relação entre o roteirista e o desenhista é exatamente assim. Parece que o roteirista está ditando tudo e o desenhista se adaptando ao roteiro, quando na verdade está acontecendo o contrário: o escritor está adaptando o roteiro ao desenhista. Para isso, é essencial que o roteirista saiba com quem está trabalhando e quais as suas maiores qualidades.

A história do Astronauta tinha tudo que o JJ Marreiro gostava de desenhar. 


Eu cheguei a ver o primeiro roteiro que Moore escreveu para o compadre Joe Bennett no título Supreme. Logo no início vinha uma observação: “Joe, eu percebi que você adora desenhar prédios expressionistas, então vamos colocar muitos nessa história”.

Quando escreveu uma história do Arqueiro Verde, para Klaus Jason, Alan Moore aproveitou ao máximo a capacidade desse desenhista, que durante anos foi arte-finalista de Frank Miller no Demolidor, para ambientação urbana. A história é repleta de prédios nos mais diversos ângulos.

Escrever um bom roteiro começa por conhecer o desenhista e saber no que ele é bom e aproveitar isso na história.  Já repararam que alguns dos melhores, senão os melhores trabalho de muitos desenhistas, foram realizados com Alan Moore?

A história de Moore para Klaus Jason aproveitava ao máximo a ambientaçã urbana.


Essa estratégia não só tira do desenhista o que ele tem de melhor como também faz com que ele se empolgue ao desenhar a HQ.

Um exemplo pessoal. Quando fui convidado a escrever uma história para o álbum MSP+50, em homenagem a Maurício de Sousa, fiquei muito feliz, e mais feliz ainda ao descobrir que seria desenhada pelo grande amigo JJ Marreiro, cujo trabalho admiro muito.

Entretanto, o peso da camisa, como se diz no futebol, acabou virando um problema. A responsabilidade de desenhar para um álbum tão importante fez o JJ travar. Eu escrevi dois roteiros e ele não desenhava.

Muitos diálogos e diagramação diferenciada na história para Kaic. 


Resolvi a situação usando a dica de Alan Moore sobre o cavalo dançarino: escrevi um novo roteiro colocando na história tudo que o JJ mais gosta. Assim, na história, o Astronauta encontra um apetrecho alienígena, a máquina do talvez, que mostra o que ele seria se não fosse um cosmonauta. Em uma versão ele era um cowboy, em outra versão um detetive ao estilo Sherlock Holmes etc...

Como sei que JJ Marreiro adora esses personagens clássicos, sabia que ele adoraria o roteiro e foi isso que aconteceu. Ele se divertiu tanto desenhando a história que acabou esquecendo a responsabilidade que era fazer um trabalho em homenagem aos 50 anos do Maurício de Sousa.

Isso, entretanto, não significa manter o desenhista numa zona de conforto. A partir daquilo que ele gosta de fazer, podemos propor inovações, algo que ele não está acostumado a fazer.

Mais uma página de Nat Muniz, só porque eu gostei muito. 


Recentemente, fui convidado a escrever roteiros para a revista do coletivo AP Quadrinhos e analisei o estilo das pessoas que iriam ficar responsáveis por desenhar minhas histórias. Também conversei com eles.

No caso do Kaic percebi que ele gosta de mostrar personagens, cenas de diálogos. Percebi também que havia abertura para uma diagramação mais arrojada. Fiz um roteiro que envolvia principalmente diálogos e estimulava uma diagramação inovadora. O resultado surpreendeu e me pareceu inclusive acima dos trabalhos anteriores dele.

No caso da Nat Muniz, eu tinha ficado impressionado com uma produção anterior dela, o fanzine Jaguadarte. Esse trabalho mostrou que o traço dela funcionava muito bem para temas regionais e ela parecia ter se esmerado ao desenhar a cobra da história. Assim, fiz um roteiro sobre a cobra grande e o resultado foi impressionante, especialmente a cena com a luta das duas cobras. Dá para perceber que ela curtiu muito fazer aquela sequência, tanto que foi a primeira que ela arte-finalizou. Eu comentei com ela: “você nasceu para desenhar cobras”.

Usar a tática do cavalo dançarino, além de ser uma consideração aos desenhistas, oferece um terreno fértil para que para que eles possam expressar aquilo que têm de melhor.

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