A revista
Kripta foi uma das melhores já lançadas no Brasil. Lançada pela RGE na década de 1970, ela reformulou a forma como se via o terror e fantasia até então. Antes dela, a principal referência eram as ótimas, mas já defasadas, histórias da EC Comics. Embora a revista origina (
Eerie)l tenha surgido nos EUA imitando as histórias da EC, logo ela encontraria o seu próprio caminho ao publicar trabalhos mais autorais. O auge foi quando entraram os artistas espanhois e filipinos. As histórias inclusive se tornaram mais filosóficas e texto e desenho alcançaram um nível poucas vezes igualado nos quadrinhos.
Exemplo disso é a história Castelos de Areia, de Gerry Boubreau e José Ortiz (publicada na Kripta especial 1), que analiso abaixo.
Em tempo: essas histórias estão sendo relançadas em álbuns pela
editora Mithos.
Castelos de areia é uma típica narrativa paralela. Nessa primeira página acompanhamos o primeiro nível dessa narrativa. Uma mulher foge para dentro de uma caverna. O texto está em terceira pessoa e tem como objetivo criar a sensação de terror, medo, angústia. Reparem nas metáforas: O túnel é frio como o útero de uma mãe morta, as paredes são enrugadas como as de um velho índio. A referência a ratos e vermes tem o mesmo objetivo. Trata-se aqui de um texto de ambientação, cuja função é colocar o leitor dentro da história, situá-lo tanto geográficamente quanto em nível de percepção que se espera dele. Nessa mesma página conhecemos um pouco mais sobre a personagem que corre e suas motivações: Ela é uma crente e está indo para o lugar onde se escondem os últimos crentes.
Nessa segunda página chegamos ao segundo nível da narrativa, agora num mundo que aparentemente é espiritual. Uma figura que logo descobriremos ser Deus constroi castelos de areia na praia enquanto a narrativa conta um pouco de sua história. É também uma narrativa de ambientação, que avisa o leitor que o cenário mudou. Estamos agora nos domínios da fábula ou da metáfora. Como a própria narrativa é metafórica (percebemos que Deus tem vários rostos e que morre a cada vez que morre um crente), o texto evita as metáforas, sendo mais objetivo.
Essa terceira página, intitulada "Lição rápida de história antiga" tem exatamente esse objetivo: situar historicamente o leitor, explicando como e porque começou a perseguição aos crentes. O leitor poderia ter começado por aí, já que esse é o ponto cronologicamente mais antigo, mas optou por um flash back para tornar a história menos linear. Uma estratégia interessante foi colocar o singular no meio do universal: no meio da narrativa mais geral, é contada a história da jornalista que acusa o guarda de segurança. Essa é uma tática muito usada por Alan Moore, em Monstro do Pântano por exemplo, e ajuda o leitor a entender melhor os fatos mostrados. Apenas com esse quadro sabemos que o nível de paranoia chegou a tal ponto que qualquer acusação poderia levar uma pessoa à morte. Aliás, um curioso paralelo com a inquisição espanhola.
Voltamos para a narrativa da caverna da crente Marti. Destaque agora para o aprofundamento de relações entre Marti e Loz. O desenho ajuda muito nesse sentido. Quando o texto fala dos sentimentos de Marti, ela está em primeiro plano e Loz em segundo. Quando descobrimos os sentimentos de Loz, ele está em primeiro plano e Marti em segundo plano. Detalhes como o fato de Loz gostar de fazer amor ao ar livre dão mais verossimilhança à trama e são um ponto a mais para que o leitor acredite na história.
Chegamos a mais um nível de narrativa (até agora já são 4 narrativas paralelas). Agora acompanhamos os policiais que irão exterminar os crentes. O texto fala sobre os personagens traidores diferenciando-os em termos de personalidade. Bosco trai os crentes por dinheiro, Reutman por ambições políticas. Interessante a metáfora no último quadrinho: as pegadas de Reutman são como pústulas na neve virgem. Como os quadrinhos são a arte da síntese, a boa escolha de palavras, de forte impacto, é de importância fundamental.
Voltamos para o nível de narrativa do planeta de deus, chamado na história de Janus Kah. Interessante que o texto procura explorar o lado humano de Deus. Na mesma página, temos a quinta narrativa, sobre o presidente e a ironia aí é que o Presidente é mostrado como menos humano do que Deus. Mais uma ironia: a morte do último teísta pode ser o fim do Presidente.
No primeiro quadro o texto repete duas vezes a palavra "leite": "A polícia se espalhou como leite derramado e Reutman parecia leite...". Não sei se foi erro de tradução, já que o roteirista até então havia sido bastante cuidadoso com o uso de palavras. Usar leite duas vezes como metáfora parece ser o ponto mais fraco da história. Em compensação, no quarto quadrinho, um texto bastante criativo: "Mais tarde, Marti estava rezando e Reutman atirou a faca. A prece e a lâmina ficaram em sua garganta". No final, a narrativa volta para o Presidente, agora apreensivo e torcendo para que pelo menos dois crentes escapem.
Última página da história. Com a morte da última crente, morre a última face de Deus. Interessante que a posição de Marti é parecida com a de Janus Kah para deixar bem clara essa relação. No último quadro, mais uma metáfora interessante: "Tudo que resta da passagem de Deus é a marca de sua mão. Terminados os castelos, o mar olha para ela, sofregamente". Castelos de areia é uma metáfora conhecida de sonhos (Fulano vive fazendo castelos de areia) e essa relação fica bem clara nesse último quadro. No trecho "O mar olha para ela..." temos a
personificação, uma figura de estilo em que coisas ganham sentimentos ou características humanas e mostra o domínio que o roteirista tem da uso da linguagem.
Domínio da linguagem e domínio da narrativa: Gerry Boubreau transformou uma história simples sobre uma perseguição em uma trama interessante, complexa, pela alternância de pontos de vista e narrativas. E fez isso sem prejudicar a compreensão da história.