Quando comecei a escrever quadrinhos eróticos, ali pelo ano de 1992, eu não queria repetir os chavões de histórias desse tipo, que geralmente se limitavam a monossílabos, interjeições, onomatopeias e palavrões.
Então, minha grande inspiração foi o grande escritor curitibano Nelson Padrella, em especial uma história chamada “Lembrança”. Padrella era um dos principais roteiristas da editora Grafipar e nessa história em específico conseguiu com perfeição o tom poético que eu queria para meu texto.
Há uma curiosidade sobre essa história. Ao assinar a história, o desenhista Rodval Matias colocou o ano de 1986. Acontece que a Grafipar terminou em 1983. Nem o próprio Padrella consegiu explicar essa incoerência. É possível que o desenhista tivesse recebido esse roteiro na época da Grafipar, mas só o desenhou três anos depois do fim da editora. De fato, eu li essa história numa revista da Nova Sampa.
A HQ fala de um encontro de dois adolescentes num dia de chuva.
O rapaz está passando, todo molhado pelo portão de uma casa, quando a moça o chama. O tom é não só poético, mas saudosista, como se alguém mais velho estivesse se recordando de um passado longíncuo e idílico:
“Chove muito... e a chuva é a mesma daquele dia... era setembro ou outubro, não recordo direito. Ainda o frio do inverno pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba. eu encontrei você no portão de sua casa, disse “olá”, com displicência, assim como quem vai embora... você sorriu!”.
O clima é de saudosismo expresso pela expressão "é a mesma chuva daquele dia". O poético, que já aparecia desde o início, fica explícito no trecho "Ainda o frio pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba". O roteirista-poeta brinca com as palaras: o frio se refere ao tempo (tardes), mas também ao local (jardins de Curitiba).
A distribuição do texto, com apenas a expressão "Você sorriu" no último quadro, transforma essa página numa verdadeira poesia visual ao mesmo tempo em que transmite a solidão e tristeza do personagem, que olha saudoso para o portão aberto da casa vazia.
A página seguinte mostra a mesma imagem, mas de outro ponto de vista, e agora vemos uma garota no portão convidando com as mãos o rapaz a entrar.
O texto diz:
“Era setembro ou outubro, não me lembro bem. Só lembro que depois de tanto tempo passei pelo portão da sua casa e você estava lá... e sem dizer palavras convidou-me com um gesto meigo. Não resisti e disse sim com os olhos. Saímos da chuva para dentro da sua casa que rescendia a aromas raros... cheiro de cravo e açúcares, algo de baunilha e infância...”.
O texto aqui é sutil e cheio de insinuações. Ela faz um “gesto meigo” e ele “diz sim com os olhos”. Os aromas da casa remetem ao café que ela está preparando, mas também são simbólicos: o cravo insinua sexualidade e afrodisíaco (vale lembrar que um pouco antes fizera sucesso uma novela chamada Gabriela cravo e canela, que se destacava exatamente pela protagonista sensual interpretada por Sônia Braga). A baunilha, como o próprio texto diz, representa infância, ingenuidade, dando a entender que essa teria sido a primeira relação sexual do garoto.
Padrella brinca novamente com as palavras, fazendo algo que se parece com a sinestesia, em que os sentidos se misturam, mas aqui ele mistura sentidos com idade.
Na terceira página vemos novamente um texto que surpreende o leitor e remete ao poético:
“Meus olhos procuravam os teus com frequência. Mas foram nossas bocas que se encontraram primeiro”.
Uma outra curiosidade sobre essa história: na época em que foi desenhada o mercado já pedia histórias explícitas, de forma que o desenho de Rodval mostra explicitamente toda a relação sexual, em absoluto contraste com o texto intimista de Padrella. Mas mesmo assim, Rodval acerta ao fazer os dois protagonistas com um ar de adolescentes, mantendo, visualmente, a ingenuidade e saudosismo da trama.
Enfim, uma história curta, mas uma verdadeira obra-prima dos quadrinhos nacionais.
Para ler a história completa, clique aqui.
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