sábado, 31 de maio de 2025
Yuki – vingança na neve
sábado, 10 de maio de 2025
O valor de cada quadro na página de quadrinhos
Em uma página de quadrinhos, os quadros podem ter valor narrativo diferente. Alguns merecem maior destaque, seja pela sua importância para a história, seja pelo seu valor dramático ou de ação. Ou seja: alguns quadros são apenas narrativos, outros devem provocar um impacto no leitor. Os quadros de impacto são maiores exatamente por serem mais importantes. O roteirista deve indicar, no roteiro, quando há um quadro de impacto na página.
A minissérie Watchmen é um ótimo exemplo de como utilizar esse recurso, sendo uma verdadeira aula.Abaixo uma página em que todos quadros têm a mesma importância:
Já na página seguinte, o último quadro tem maior valor dramático. Todos os outros são apenas uma preparação para o impacto deste último, pois o destino do mundo está nas mãos de um idiota:
Watchmen usa um esquema fixo de 9 quadros por página, como se fossem blocos que pudessem ser separados ou unidos.
Para formatinho, o esquema de 6 quadros funciona muito bem e pode ser usado da mesma maneira, inclusive com quadros de impacto. Ótimo exemplo disso são as páginas de Júlias, as aventuras de uma criminóloga.
Na página abaixo, de simples diálogo, não há necessidade de qualquer impacto, então os quadros são iguais:
Já na página abaixo, o último quadro é maior, de impacto, para destacar a violência do personagem:
Abaixo um exemplo do Monstro do Pântano, de Alan Moore, com um esquema de quadros mais solto, mas que igualmente usa o tamanho do quadro para dar impacto à cena. Nessa imagem o quadro de impacto é o do meio da página, com o ataque dos helicópteros. Percebam como ele é muito maior que os outros:
E, para quem não sacou a referência, essa história tem várias imagens que foram inspiradas no artista Hieronymus Bosch.
quinta-feira, 1 de maio de 2025
A gramática dos super-heróis
Algo que tenho percebido em muitas pessoas que produzem quadrinhos de super-heróis no Brasil atualmente é um desconhecimento dos elementos que compõe um gibi de super-heróis.
Embora os super-heróis tenham surgido no final da década de 1930, foi na década de 1960 que caras como Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, John Romita e Joh Buscema definiram a linguagem definitiva dos super-heróis. O jeito Marvel de fazer quadrinhos era tão inovador, tão poderoso, que a partir daí tudo que foi feito rezou pela cartilha Marvel (mesmo a antagonista DC Comics acabou depois acompanhando essa cartilha).Assim, para fazer super-heróis é essencial ler clássicos como o Quarteto Fantástico de Lee e Kirby ou o Homem-aranha de Lee-Ditko-Romita. A linguagem está ali, em estado puro, pronta para ser estudada, aprendida e, se for o caso, revolucionada. Os caras que na década de 1980 revolucionaram o gênero, como Frank Miller e Alan Moore conheciam essa gramática dos super-heróis de cor e só conseguiram fazer algo inovador por causa desse conhecimento.
Então, vamos conhecer um pouco dessa "gramática".
Continuação
A grande inovação da Marvel foi apresentar histórias em sequência, dentro de uma cronologia. Hoje praticamente todo mundo faz isso, mas na época era novidade. Na DC, por exemplo, era raro uma história que não concluísse dentro de um gibi. Mas se a continuação pode ser interessante, pode também ser uma armadilha. Imagine o leitor que vai na banca, compra um gibi que não conhece e, ao lê-lo descobre que a história não termina ali, a história para no meio da ação, às vezes no meio de um diálogo. O que o leitor faz? Ele joga fora o gibi. A sequência pode ser interessante, mas para isso precisa ser bem trabalhada, precisa prender a atenção do leitor e levá-lo a comprar o próximo gibi.
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A história termina em uma situação de suspense: gancho para o próximo gibi. |
Uma forma de fazer isso são os famosos ganchos: uma situação de suspense no final do gibi que deixa o leitor curioso para comprar o próximo número. Imagine: o herói está caído e alguém se aproxima para arrancar sua máscara. Sua identidade será descoberta? Compre o próximo gibi e descubra! Isso vicia o leitor. Outra forma é fazer uma mini-conclusão, como se cada gibi fosse um capítulo de um livro. Uma parte do conflito é resolvida no final daquele gibi, mas há algo maior, que o leitor só saberá como acaba lendo os próximos gibis.
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O conflito foi resolvido. Mas a história terminou? Isso você só saberá no próximo gibi. |
Stan Lee e Jack Kirby nos seus melhores momentos experimentavam uma união dessas duas estratégias. Uma parte do conflito era resolvida, só para surgir um conflito ainda maior em seguida. Thor estava para ser derrotado por um inimigo invencível. Então surgia um ser poderoso e derrotava o vilão (o que fechava a trama daquele gibi). Mas aí o leitor descobria que o ser poderoso só havia feito isso porque ele mesmo queria ter a honra de matar o herói (e aí temos o gancho para o próximo gibi).
Muitas vezes o gancho desembocava no próximo gibi numa cena impressionante, numa... splash page!
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Splash page ocupando a primeira página. |
Splash page
Lee e Kirby sabiam que os quadrinhos são uma mídia visual. Páginas e páginas de diálogos não são nada diante de uma imagem poderosa, de impacto, ação, especialmente para os leitores de super-heróis. Assim, colocar uma splash page no início de cada história era uma forma de agarrar o leitor, conquistá-lo já no começo. A primeira coisa a se dizer sobre splash page é que ela deve ser uma cena de impacto e deve ser relevante para a história. Uma sequência de diálogo, por exemplo, não funciona como splash page (uma vez Kirby fez uma splash page de diálogo, mas eram dois deuses conversando algo grandioso, em um cenário grandioso, de modo que acabou valendo).
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Splash page de página dupla, ocupando as páginas 2 e 3. |
Splash page deve concentrar toda a ação, mistério, suspense da história. Ela pode vir na primeira página. Ou na segunda, ou terceira página, sendo consequência direta do que veio antes. Um exemplo nesse sentido: o herói entra no esconderijo do vilão e a primeira página o mostra entrando. Na segunda ou terceira página ele está lá dentro e está sendo atacado por todos os lacaios do vilão numa imagem de tirar o fôlego!
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Sequência de ação que desemboca numa splash page. |
Lembrando que a splash page, embora seja normalmente uma página inteira, pode também ocupar duas páginas, tendo ainda mais impacto. Em tempo: é na splash page que são colocados o título da história e os créditos.
Recapitulando
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Nas histórias da Marvel a recapitulação sempre é integrada à história. |
Como as revistas da Marvel eram quase todas em continuação e nem sempre o leitor havia comprado o gibi anterior, Stan Lee inventou um estratagema para situá-lo. Era praticamente uma norma que nas primeiras páginas o roteirista situasse o leitor dentro da história. Para isso ele deveria, obrigatoriamente, com o texto, responder a três perguntas: Quem? Onde? O que está acontecendo? Alguns roteiristas chegavam até mesmo a colocar essas perguntas no texto, respondendo-as.
Esses são alguns elementos básicos. Para melhor entendê-los (e perceber outros elementos) vale a dica do início: ler os clássicos. Vale a pena comprar uma antologia de histórias clássicas da Marvel e aprender um pouco como essas histórias eram feitas.
domingo, 20 de abril de 2025
Dan Dare: processo de produção do roteiro
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Dan Dare e seus amigos, na versão clássica. |
Dan Dare é um dos mais clássicos personagens de quadrinhos da Inglaterra, e certamente um dos mais importantes no gênero ficção cientifica, rivalizando apenas com Jude Dreed. O personagem é da década de 1950 e chegou a ser lançado no Brasil pela Ebal na década de 1970, na revista 2000 AD.
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Dan Dare na versão da década de 1970. |
Em 2016 fui contatado por um agente local para escrever as aventuras do personagem para uma revista britânica, a Strip Magazine. O esquema era o comum das publicações em série britânicas: histórias em continuidade de seis páginas que formavam um ciclo depois lançado como álbum de luxo.
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Revista nos moldes da 2000 AD na qual seria publicada a nova versão do personagem. |
Eu escreveria a segunda saga do personagem (a primeira seria escrita pelo editor).
Propus um plot sobre um planeta com uma inteligência vegetal que foi aceito com sugestões do editor para adequar à trama ao plot maior.
Fiz o plot estendido e o roteiro de duas partes da saga. Foi uma experiência interessante por trabalhar com o método inglês, com roteiros detalhados, que incluíam inclusive angulação e planos. Para facilitar para o tradutor, a partir do segundo capítulo, eu comecei a colocar os termos técnicos em inglês, garantindo que eles ficassem corretos na tradução.
Esse material ficou inédito por mais de um ano até que esta semana tive a confirmação do agente de que a revista de fato não terá continuidade, embora tenham pago pelo roteiro.
Assim, publico aqui partes do material produzido, como forma inclusive de mostrar como é o processo de produção de roteiro de uma editora estrangeira.
PLOT
Dan Dare e sua equipe chegam a um planeta desconhecido. A Prof Peabody afirma que há uma forma de vida complexa, grande e possivelmente inteligente no planeta. Dan sai para investigar. Quando volta, a nave desapareceu. Na verdade, o planeta inteiro é um grande ser.Dan come uma fruta e entra em contato com o planeta. Descobre que o planeta está sob ameaça e por isso reagiu. O planeta devolve a nave e Dan promete ajudar.
PLOT DECUPADO DO PRIMEIRO CAPÍTULO
Este capítulo terá menos ação já que ele irá introduzir os personagens. Dan Dare e seu time chegam na Valiant(Design por John Ridgway), uma grande nave de exploração, em um planeta desconhecido fora do nosso sistema solar.
Professora Peabody confirma que existe evidências de vida alienígena no planeta, mas os sinais que ela detectou não indicam quantos nem a quanto tem eles estão ali.domingo, 8 de dezembro de 2024
Lembrança: O erotismo poético de Nelson Padrella
Quando comecei a escrever quadrinhos eróticos, ali pelo ano de 1992, eu não queria repetir os chavões de histórias desse tipo, que geralmente se limitavam a monossílabos, interjeições, onomatopeias e palavrões.
Então, minha grande inspiração foi o grande escritor curitibano Nelson Padrella, em especial uma história chamada “Lembrança”. Padrella era um dos principais roteiristas da editora Grafipar e nessa história em específico conseguiu com perfeição o tom poético que eu queria para meu texto.
Há uma curiosidade sobre essa história. Ao assinar a história, o desenhista Rodval Matias colocou o ano de 1986. Acontece que a Grafipar terminou em 1983. Nem o próprio Padrella consegiu explicar essa incoerência. É possível que o desenhista tivesse recebido esse roteiro na época da Grafipar, mas só o desenhou três anos depois do fim da editora. De fato, eu li essa história numa revista da Nova Sampa.
A HQ fala de um encontro de dois adolescentes num dia de chuva.
O rapaz está passando, todo molhado pelo portão de uma casa, quando a moça o chama. O tom é não só poético, mas saudosista, como se alguém mais velho estivesse se recordando de um passado longíncuo e idílico:
“Chove muito... e a chuva é a mesma daquele dia... era setembro ou outubro, não recordo direito. Ainda o frio do inverno pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba. eu encontrei você no portão de sua casa, disse “olá”, com displicência, assim como quem vai embora... você sorriu!”.
O clima é de saudosismo expresso pela expressão "é a mesma chuva daquele dia". O poético, que já aparecia desde o início, fica explícito no trecho "Ainda o frio pairava nas tardes e nos jardins de Curitiba". O roteirista-poeta brinca com as palaras: o frio se refere ao tempo (tardes), mas também ao local (jardins de Curitiba).
A distribuição do texto, com apenas a expressão "Você sorriu" no último quadro, transforma essa página numa verdadeira poesia visual ao mesmo tempo em que transmite a solidão e tristeza do personagem, que olha saudoso para o portão aberto da casa vazia.
A página seguinte mostra a mesma imagem, mas de outro ponto de vista, e agora vemos uma garota no portão convidando com as mãos o rapaz a entrar.
O texto diz:
“Era setembro ou outubro, não me lembro bem. Só lembro que depois de tanto tempo passei pelo portão da sua casa e você estava lá... e sem dizer palavras convidou-me com um gesto meigo. Não resisti e disse sim com os olhos. Saímos da chuva para dentro da sua casa que rescendia a aromas raros... cheiro de cravo e açúcares, algo de baunilha e infância...”.
O texto aqui é sutil e cheio de insinuações. Ela faz um “gesto meigo” e ele “diz sim com os olhos”. Os aromas da casa remetem ao café que ela está preparando, mas também são simbólicos: o cravo insinua sexualidade e afrodisíaco (vale lembrar que um pouco antes fizera sucesso uma novela chamada Gabriela cravo e canela, que se destacava exatamente pela protagonista sensual interpretada por Sônia Braga). A baunilha, como o próprio texto diz, representa infância, ingenuidade, dando a entender que essa teria sido a primeira relação sexual do garoto.
Padrella brinca novamente com as palavras, fazendo algo que se parece com a sinestesia, em que os sentidos se misturam, mas aqui ele mistura sentidos com idade.
Na terceira página vemos novamente um texto que surpreende o leitor e remete ao poético:
“Meus olhos procuravam os teus com frequência. Mas foram nossas bocas que se encontraram primeiro”.
Uma outra curiosidade sobre essa história: na época em que foi desenhada o mercado já pedia histórias explícitas, de forma que o desenho de Rodval mostra explicitamente toda a relação sexual, em absoluto contraste com o texto intimista de Padrella. Mas mesmo assim, Rodval acerta ao fazer os dois protagonistas com um ar de adolescentes, mantendo, visualmente, a ingenuidade e saudosismo da trama.
Enfim, uma história curta, mas uma verdadeira obra-prima dos quadrinhos nacionais.
Para ler a história completa, clique aqui.